O ESTADO DE S. PAULO
É compreensível o empenho do presidente Lula para fazer de Dilma Rousseff a próxima governante do País. Deveria haver menos calor moralizante nas acusações que a ele se fazem.
Afinal, não há ocupante de cargo de comando que não queira ver em seu lugar, na impossibilidade de nele continuar, alguém que lhe suceda de modo positivo, isto é, como continuidade, sem ajustes de contas e com os devidos encômios. Quem está prestes a sair de um cargo se move pela pretensão de projetar nele uma sombra, sente-se responsável pelo que virá. Faz isso mesmo sabendo que depois, passados os primeiros meses do novo governo, o sucessor dele se distanciará, ou para alçar voo próprio, ou para corresponder às mudanças de conjuntura ou de correlação de forças.
Todo governante enfrenta esse dilema quando se aproxima o desfecho de seu mandato. Para ajudá-lo a não cair em tentação os Estados republicanos se valem de mecanismos de controle e moderação - no caso brasileiro, os tribunais eleitorais, por exemplo -, bem como da disseminação, na população e especialmente na classe política, de uma cultura específica e de uma ética pública, imune a invasões espúrias ou particularistas.
Certos aspectos da conduta de Lula estão associados a essa relação do governante com o Estado. Não são de ordem moral. São éticos e políticos.
Um deles é o da transgressão da legislação eleitoral, que veta o uso da máquina pública (e, portanto, da palavra, dos atos e do gestual do presidente) para promover e favorecer candidaturas ou coalizões eleitorais. Indiferente aos rigores e às penas da lei, Lula tem sido recorrente na violação das regras e dos limites legais. Foi advertido e multado, pediu desculpas, mas não se abalou. Sua campanha em favor de Dilma ultrapassou a dimensão republicana que se espera seja considerada por qualquer executivo público.
Esse é um item já bastante destacado pela crônica política. Não é o caso de explorá-lo ainda mais ou de submeter o presidente a um tribunal. Mas dele derivam duas consequências principais, que precisam, no mínimo, ser consideradas.
A primeira é a banalização da lei, a disseminação de uma imagem de que a lei só vale para os outros, de que sempre se pode dar um jeito de escapar de suas restrições. Lula dá um péssimo exemplo ao País, que fica ainda pior por vir do alto, de uma liderança que goza de extraordinário prestígio e popularidade. Ele, a rigor, não precisaria se dar a tais exageros. Poderia preservar-se e com isso transferir mais valor para nossa República. Seria aplaudido por todos. Como se costuma dizer, é de cima que devem vir os melhores exemplos. Ou, nas palavras de Marina Silva, candidata do PV, "quanto mais amigo do rei, mais alta é a forca".
Lula tem-se incomodado com o que julga ser um cerco à sua liberdade de opinião e ação, uma tentativa de inibi-lo para que "finja não conhecer" sua candidata. "Há uma premeditação para me tirarem da campanha para impedir que eu ajude a Dilma", disse ele dias atrás. Parece não levar na devida conta certas obrigações do cargo que ocupa.
A segunda consequência é a fragilização da candidatura Dilma. Ela vem ganhando impulso sem se desvencilhar da acusação de que não consegue andar com as próprias pernas - de que é uma marionete do presidente ou mera criação de marketing, alguém cercado de dúvidas e indefinições. A recente frase da candidata a esse respeito só faz pôr mais lenha na fogueira: "Sou produto feito pelo governo do presidente Lula, um dos maiores governos que este país já teve."
Pode-se ponderar o quanto for, mas a fragilidade da candidata de Lula é real e subsistirá enquanto ela não revelar seus próprios recursos, em suma, mostrar-se de corpo inteiro, sem suportes externos ou maquiagem.
Não é difícil imaginar quantos governantes foram eleitos, aqui e no mundo, com apoios ostensivos de líderes prestigiosos. Apesar disso, nem sempre conseguiram fazer bons governos. Muitos foram fracos, confusos, anódinos, como se se ressentissem da saída de cena daqueles que lhes deram vida. Talvez não tenham causado maiores estragos em suas sociedades. Mas certamente contribuíram negativamente tanto para a instituição governo quanto para a própria governança. Fizeram com que seus países ficassem girando em círculos, sem resolver seus problemas e sem definir um rumo para o futuro.
Não se pode dizer que Dilma Rousseff, se eleita, venha a ser uma presidente fraca. Não há elementos cabais que atestem ou sugiram isso. Mas também não há nada, até agora, que diga o contrário, ou seja, que comprove sua independência, sua capacidade e sua liderança. O fato de ter por trás dela o apoio dedicado de Lula e do PT não lhe concede nenhuma virtude adicional. Esta ela terá de mostrar na prática, quer dizer, indo à luta com os próprios recursos. O discurso continuísta é confortável, mas insuficiente. E a pressão presidencial a seu favor distorce a democracia eleitoral.
A boa prática de um governante não começa somente quando se inicia seu governo. Começa antes: na sua biografia política, nos apoios que é capaz de agregar, em seu preparo técnico e também no modo como conduz a campanha que o levará ao cargo. Não se trata de exibir "experiência administrativa", mas de fixar uma imagem de autonomia, coerência e consistência.
A democracia, aliás, espera que todos os candidatos a postos executivos demonstrem ter ideias próprias, capacidade pessoal de liderar o sistema político e de interpelar a sociedade, força magnética para articular apoios e imprimir novos rumos ao país, determinação para fazer frente aos interesses poderosos que tentam retirar soberania do Estado. É essa exigência democrática que continua a dar aos governantes condições de governar com os olhos no conjunto da população e especialmente naqueles que são mantidos em níveis indignos de subsistência e exploração.
Professor titular de Teoria Política da UNESP.