O Estado de S.Paulo - 18/03/10
Estarrecido, como todos nós, pela tragédia humana do Haiti pós-terremoto, um amigo converteu a celebração de seu aniversário em evento de captação de doações para os haitianos. O dinheiro arrecadado não chegará nunca às pessoas que perderam o quase nada que tinham. Será desviado para financiar os intermediários entre o mundo e o devastado país caribenho: as ONGs internacionais, às vezes associadas à diminuta, cleptocrática elite haitiana. Já era assim antes do terremoto. Piorou depois.
Estado despido de soberania, o Haiti é um protetorado da ONU governado pelas ONGs. Obviamente, existem ONGs bem-intencionadas, mas não é esse o ponto. O experimento ultraliberal de abolição da soberania e do autogoverno equivale à anulação da cidadania dos haitianos. As pessoas não têm direitos, a não ser o de aguardar na fila até que o funcionário de uma ONG lhes estendam um prato de comida. É assim há anos, bem antes do terremoto.
A soberania haitiana acabou junto com sua recente, turbulenta democracia, em fevereiro de 2004, quando forças americanas e francesas sequestraram o presidente Jean-Bertrand Aristide e o depositaram na República Centro-Africana. Naquele momento, a pedido de George W. Bush, o Brasil assumiu a liderança da Missão das Nações Unidas de Estabilização do Haiti (Minustah). A ONU não restaurou a democracia, mas forneceu cobertura política e sustentação militar para a instalação de um arremedo de governo emanado de eleições sem liberdade. Em seis anos, realizaram-se uma eleição presidencial e duas parlamentares. Nenhuma teve a participação de Aristide, compulsoriamente exilado, nem de sua organização, a Fanmi Lavalas, o maior partido haitiano, impedido de concorrer por chicanas burocráticas do comitê eleitoral. É como se o PT fosse proibido de disputar eleições no Brasil.
Politicamente, o Haiti atual é fruto do protetorado da ONU. Operam no país 9 mil ONGs, uma taxa per capita inigualada em qualquer outro lugar. Na "república das ONGs", mesmo antes do terremoto, não existia nada parecido com um Estado e quase nenhum sinal de serviços públicos. Perto de 85% das crianças estudam em escolas privadas. O transporte público é privado, assim como a distribuição de água. Contam-se 6 mil policiais em todo o território, mas 15 mil agentes de empresas de segurança. Os serviços de saúde são, na sua maioria, operados por empresas privadas. O Hospital Geral de Porto Príncipe, um dos raros estabelecimentos públicos, encontra-se circundado por clínicas e farmácias privadas, de propriedade dos médicos do hospital. Nenhuma das empresas dedicadas a fornecer serviços públicos está submetida a agências estatais de vigilância. Mas virtualmente todas atuam como tentáculos diretos ou indiretos das ONGs.
Aquilo que se faz passar por um governo nacional não passa de uma coleção de despachantes das entidades privadas internacionais. Todos os ministros haitianos têm conexões com os conselhos locais das ONGs. Muitos deles exercem funções de conselheiros de diversas ONGs. Até o Viva Rio, uma ONG brasileira muito menos poderosa que a britânica Oxfam ou a americana Care, conta com os préstimos de um ministro. A nação sem Estado, sem governo e sem democracia transformou-se em reserva de caça dessas organizações, que funcionam como lagoas de captação dos financiamentos de instituições multilaterais e das doações internacionais. Ninguém conhece de fato os orçamentos dos entes estrangeiros engajados na obra humanitária de salvação dos haitianos.
Um alto oficial das forças brasileiras da Minustah narrou, num encontro acadêmico, um revelador episódio singular. Anos atrás, uma ONG decidiu limpar um canal de águas pluviais a céu aberto de Porto Príncipe que estava entupido por lixo residencial. O oficial militar argumentou que a iniciativa seria inútil, pois inexistia serviço de coleta de lixo e os residentes, encapsulados em moradias de 13 metros quadrados, não tinham alternativa para se livrar do lixo. Os responsáveis ongueiros retrucaram que, após a limpeza, a comunidade se encarregaria de conservar o canal desimpedido. A teoria subjacente é que o Haiti não precisa de Estado, mas da cooperação entre as ONGs e o povo. Meses depois, o canal estava novamente entupido.
O Haiti das imagens da TV é uma massa homogênea de miseráveis salpicada por gangues criminosas. O Haiti de verdade é diferente. O país tem intelectuais, escritores e uma imprensa sem dinheiro, mas com ideias. Entre os haitianos há profissionais qualificados em quase todas as áreas, da medicina à engenharia, passando pela educação e pelas letras. Eles só têm trabalho quando conseguem ingressar na rede das ONGs.
Existe diferenciação social no Haiti. De um lado, em enclaves patrulhados por forças privadas, reside uma elite muito rica, que não participa diretamente da vida política, mas exerce poder por meio de figuras interpostas e beneficia-se da pervasiva, assombrosa corrupção oficial. De outro, nos EUA existe uma classe média formado por exilados haitianos que partiram como reação à absoluta ausência de segurança jurídica na sua pátria. Os cerca de 600 mil imigrantes haitianos nos EUA não investem no Haiti, pois temem perder seus modestos patrimônios, mas enviam dinheiro aos familiares. Os miseráveis das paisagens exibidas na TV subsistem, essencialmente, com as rendas transferidas pelos exilados, que representam algo como um quarto do PIB e circundam o sistema de desvio de recursos das ONGs.
Nos impérios europeus do século 19, as administrações coloniais dedicavam-se a subjugar os "nativos", mas ao menos implantavam serviços públicos básicos, em geral de baixa qualidade. No Haiti sob protetorado da ONU, nem isso se faz. O povo deve mendigar às ONGs cujas sedes ficam em Washington, Paris, Ottawa ou no Rio de Janeiro. Não doe para o Haiti. Você estará doando para as ONGs.
SOCIÓLOGO. E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA. PELA USP. E-MAIL: DEMETRIO.MAGNOLI@TERRA.COM.BR