O Globo, 17/02/10
Às vezes a publicação da coluna coincide com alguma data ou assunto de interesse que perdura na mídia.
Nesse caso, ela assume o papel de quem faz e não de quem escreve no jornal e, assim atualizada, entra em sintonia com o espírito do jornal na busca de esclarecimento ou interpretação.
E, como não vemos o mundo de Marte, sabemos que informar é interpretar.
Normalmente escrita nos fins de semana e trocada com gosto pela praia, mas sempre compartilhada com meus amigos Richard Moneygrand e Johnnie Walker, a coluna não tem o dom de adivinhar os "fatos" e, em geral, tende a passar ao largo das novidades que, afinal de contas, não são tão novas assim. Senão vejamos: o mundo redescobre a contragosto, mas de forma paulatina e irreversível, limites para o consumismo; os bandidos continuam dominando as favelas cariocas que são centenas; os mais novos não cedem ou sequer enxergam os idosos nas conduções públicas; os garis, em entrevista na TV Globo, dizem que são "invisíveis" e um deles afirma que as pessoas jogam lixo no chão para que trabalhem! Um caso flagrante de como o sistema escravista (que não pode contemplar folga e encurtar a jornada de trabalho) continua operando entre nós, como percebeu Joaquim Nabuco. Ademais, em todas as entrevistas, os subalternos são sempre referidos pelo primeiro nome ou apelido, ao passo que os iguais e "superiores" são mencionados pelo nome completo. Mais adiante, uma outra matéria sugere fantasias para o carnaval e surge (grande novidade!) um bloco de homens que se fantasiam de bailarinas, parodiando um papel feminino crucial e modelar; enquanto se sugere que as mulheres se vistam de "nega maluca" (a escrava gostosa) e de presidiárias (de bandidas ou putas).
Pelo lado mais perigoso da política, há a flagrante tentativa de retomar um obsoleto "estado forte" com seu fascismo disfarçado de pai dos pobres (e mãe dos ricos), sua absurda ineficiência e sua centralização que, governo após governo, inventa esses ladrões do nosso dinheiro que ficam — apesar do protesto hiperelegante da OAB — no comando da máquina que eles mostram não ter honra para gerenciar! A própria lei impede sua punição! Tudo isso para dizer do cansaço de testemunhar todas essas inversões da moralidade democrática e liberal que exige limites e transparência, mas que, no carnaval, fica de ponta-cabeça, como eu sugeri faz tempo. E, como sou um cronista da quarta- feira, assumo a sina de escrever sobre o fim da festa: a famosa Quarta-Feira de Cinzas, que é um marco importante, pois é quem põe fim à temporada de lazer, praia e rejeição aberta do trabalho como castigo que começa no Natal.
Terminando: uma vez sugeri um elo entre carnaval e revolução. Lá, eles tentaram botar o mundo de cabeça pra baixo permanentemente, igualando ricos e pobres e transferindo da aristocracia de sangue azul o poder que foi compartilhado também pela burguesia lida como povo porque sua riqueza vinha de uma novidade: o desempenho dos seus membros; a sua aplicação ou trabalho em alguma atividade humana. Foi isso que inventou o dinheiro e o mercado.
Era preciso traduzir esse desempenho em algo mais do que impostos que apenas confirmavam o poder de gastança dos aristocratas que faziam guerras, viviam em palácios, vestiam seda e plumas e
poder de gastança dos aristocratas que faziam guerras, viviam em palácios, vestiam seda e plumas e — exatamente como ocorre em Brasília — viviam em festas. Aqui, transitamos de uma monarquia para a república sem nenhuma preocupação com a igualdade que a elite não via como problema ou como algo possível numa sociedade de maioria mestiça e ex-escrava. Um sistema de doações face a face, como estamos vendo no vergonhoso caso Arruda, veio preencher o vazio entre os governantes e governados, apesar dos postulados igualitários.
Sem revolução, mas revoltados e sempre ressentidos, cometemos um ato falho: inventamos o carnaval! Nessa festa revelamos, com prazo para começar e terminar, que a ordem social pode ser desconstruída e posta de cabeça pra baixo. Os poderosos são englobados pela massa de pobres, marginais e supermulheres (pombas-gira) que simbolizam o poder dos fracos. O poder político machista e hierarquizado: fálico, marcado por canetadas e cetros, torna-se feminino e substantivamente igualitário.
O cassetete é substituído pelo manto de Eva, que tudo engloba e aceita. Agora, a mulher é superior ao homem; e a malandragem reina sem as hipocrisias da lei. Há, como mostraram alguns historiadores, um elo entre revolta e carnaval e há, como sugerem algumas pinturas, um vínculo entre carnaval e revolução. Em todos os casos, o mundo é sempre comandado por uma mulher dona de si mesma, imagem em contraste com a virgem e a mãe — para não falar na paradoxal virgem- mãe — que controla o nosso cotidiano. À falta de uma mudança política que nos faça menos elitistas, personalistas e hierárquicos, brincamos e pulamos carnaval.
Só que o carnaval acaba em cinzas, esse símbolo do limite de tudo que é regrado e humano, ao passo que nossa malandragem política, com seus planos B e seu desabrido populismo personalista, não parece ter fim.