domingo, dezembro 20, 2009

JOÃO UBALDO RIBEIRO Noite feliz

O Globo



Aqui na ilha, verdade seja dita, o Natal nunca foi dos mais famosos. Há até quem sustente que Papai Noel não aparece por cá porque não confia no ferrobote (no original, ferryboat, mas o pessoal acha que o nome é por causa do ferro que ela dá na gente, logo o correto é isso mesmo), ou se recusa a pagar um absurdo para atravessar a baía apenas com um trenó velho e alguns animais aveadados. Contamme também, não sei se é fato, que a tentativa de promover um Natal de amigo oculto não deu certo, até porque a maior parte entendeu mal a brincadeira e se escondeu o Natal inteiro, sem dar nem receber presente, tendo no fim achado a ideia tão besta que ninguém quis mais nem discutir a realização de outra festa de amigo oculto.

Este ano, porém, a coisa promete.

Mostrando, mais uma vez, como nosso mundo é cheio de surpresas, a novidade natalina saiu de onde menos se esperava. Pasmem, mas quem está promovendo o novo Natal na ilha é Zecamunista, é o que estou lhes dizendo. Será que se confirmam os rumores de que, materialista empedernido, ateu impenitente, herege militante, ele é visto com frequência, antes do nascer do sol, encostado na porta da igreja de São Lourenço e argumentando com o santo em gestos veementes, talvez pedindo perdão pelos seus muitos pecados? Será que também se confirmam outros rumores, segundo os quais é dele o braço munificente que custeia as ricas novenas de Santo Antônio de uma certa viúva? Será mesmo, enfim, que ele se benze furtivamente, quando passa pela frente da Matriz? Creio que nada disso vem ao caso, não vamos expor a intimidade de ninguém, ainda mais quando isso pode ser alvo de exploração política.

O que vem ao caso é que todos têm comentado a grande movimentação que passou a ser notada na casa dele, desde fins de novembro.

De início, pensou-se que ele estava promovendo mais um torneio de pôquer, depois que, numa sucessão estonteante de blefes amparados por suas grandes habilidades, raspou as fichas de seus contendores de Feira de Santana, mas deu o dinheiro quase todo para sua Fundação para a Defesa da MulherDama Desamparada, podendo ser que agora estivesse precisando de algum apoio financeiro.

— De apoio financeiro eu estou precisando mesmo — me disse ele, quando o procurei para esclarecer os boatos. — Mas apoio de algum burguês endinheirado, não de um mero intelectual a serviço dos altos e baixos interesses de Wall Street, como você.

— Eu, a serviço de Wall Street? — É uma avaliação genérica, tenha calma, não é caso de paredão, não é caso nem de uma temporada de trabalhos forçados na Sibéria.

Tudo no Brasil está a serviço de Wall Street e da alta burguesia, a começar pelo governo. Você se lembra do que diziam do ditador Getúlio Vargas? — Em que sentido? — No sentido que interessa. O que diziam era que ele era o pai dos pobres e a mãe dos ricos. Agora o presidente é outro, mas é o mesmo, pai dos pobres, mãe dos ricos.

— Bem, de certa forma...

— De certa forma, não. De todas as formas, cada dia mais! Tudo a serviço da burguesia internacional! — Nesse caso, por que você me disse que queria o apoio de um burguês? — Ah, é diferente. É porque eu estou organizando um Natal especial aqui na ilha, um patrocínio ajudaria nas despesas.

— Natal? Você, organizando um Natal? — Um Natal do proletariado, um Natal da consciência de classe, um Natal sem esse embuste de Papai Noel. Ou, por outra, desmistificando esse Papai Noel americanalhado.

O nosso vai sair numa carroça puxada por oito jegues e com um chapéu na mão, para, em vez de dar presentes, recolher as esmolas com que os plutocratas e corruptos querem comprar a consciência do povo.

Esse pessoal que está aqui em casa está ensaiando para o cortejo que eu pretendo organizar.

— Pelo que eu estou vendo, a coisa vai ser boa, com essas moças daí.

— Não vulgarize minhas intenções! Não me venha com suas inferências vulgares! Essas são minhas colaboradoras num objetivo sociopolítico, elas vão me ajudar no projeto de socialização de nossas riquezas.

— Zeca, você me desculpe, mas agora eu sou obrigado a achar que essa é uma ideia desmiolada. Que riquezas são essas? Quer dizer, ar puro, paisagens bonitas e assim por diante, que é mesmo o que nós temos, já estão socializados, todo mundo pode desfrutar à vontade.

— Você se esquece de nossa principal riqueza. É mais um exemplo de alienação e baixa autoestima.

A nossa principal riqueza somos nós mesmos.

— Está certo, mas você vai socializar a nós mesmos? Não entendi.

— Você vai entender e vai querer também se socializar. Socializar, no nosso caso, significa estarmos à disposição de qualquer pessoa que pretenda usar nossos préstimos de forma legítima.

— Você quer dizer trabalhar de graça? — Isso não, nada de alienar nossa mais-valia. Isto aqui é uma terra de lazer, eu me refiro à socialização do lazer. Por exemplo, meu lazer está aberto ao lazer de qualquer conterrânea que queira desfrutar de mim de graça.

— Ah, já vi tudo. E você acha mesmo que as mulheres vão topar?— Eu sou pela igualdade dos sexos, são as mulheres na vanguarda do socialismo científico. E, além do mais, foi ideia delas. Você vai ver que noite.