sábado, dezembro 19, 2009

A Boca da Verdade, de Mario Sabino

Um sopro diabólico

Os contos de A Boca da Verdade, de Mario Sabino, arrancam
máscaras, revelam desajustes, e confirmam a inteligência do autor


Alcir Pécora

Claudio Rossi

DESENGANO
Sabino: abordagem dos mais diversos dramas – do pai cuja dentadura se ajusta mal à boca ao papa que dirige sua igreja sem ter fé


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Após estrear em 2004 com o romance O Dia em que Matei Meu Pai, Mario Sabino, redator-chefe de VEJA, tem se dedicado ao conto. Foi assim em 2005, com O Antinarciso, e agora no recentemente lançado A Boca da Verdade(Record; 144 páginas; 29,90 reais). São títulos interessantes que revelam um temperamento literário bem acima do cipoal anódino que tem travado o gênero.

Para apresentar o novo livro, pode-se recorrer à própria divisão em três partes em que estão distribuídos os contos. A primeira delas, Inexistências, reúne textos curtos em torno da morte dos pais, e em especial do pai. O tema é recorrente na literatura de Sabino e se expande para outras representações da autoridade, como o saber, a superstição e o amor familiar. São especialmente bem-sucedidos os contos nos quais a repulsa ao pai ou o desmantelamento da função de autoridade se materializam em imagens simultaneamente objetivas e afetivas, como a dentadura mal ajustada à boca ou a má hora de uma ereção.

A segunda parte, Recortes, não traz exatamente contos, mas fragmentos alegóricos, cujos núcleos de ação funcionam como dramatização de temas filosóficos e psicanalíticos, conduzidos de modo a ressaltar seu caráter insolúvel e paradoxal. Neles se acentuam, por exemplo, a contingência da moral, a crueldade da conquista amorosa, a cadeia comunicativa entre genética e afetividade, a sedução sempre a par do horror de viver. Esse conjunto, entretanto, demandaria talvez maior abstração, e igualmente doses mais concentradas de violência, como, por exemplo, Samuel Rawet logra realizar.

Representações dá título à terceira parte. São contos mais longos e também mais desenvolvidos em suas circunstâncias ordinárias de pessoa, tempo e lugar. O tema comum é a presença demoníaca que imanta objetos de cultivo artístico, de distinção profissional ou de devoção íntima. O efeito principal dela é o desengano de qualquer justificação edificante de seus meios ou fins. Assim, o advogado na iminência de aplicar um golpe no patrão que o lançou na carreira, o papa que dirige sem fé a instituição eclesiástica e o artista confortável em sua mediocridade recebem todos o sopro diabólico que lhes revela a face vazia de sua vocação mais íntima. A inteligência da abordagem e as questões relevantes dos contos têm por vezes, como contrapasso, certo aspecto programático, ilustrativo, que torna os contos obedientes à demonstração conceitual. Nada contra o conceito, claro. Mas para que ele obtenha eficácia literária é preciso que entregue destemidamente à narrativa as rédeas de seu andamento.