sábado, outubro 24, 2009

Fogo no acervo de Hélio Oiticica

Acabou em cinzas

O incêndio do acervo de Hélio Oiticica é o retrato da relação equivocada que
se criou entre herdeiros e o legado de alguns dos mais importantes artistas brasileiros


Silvia Rogar

Dilmar Cavalher/Strana
PROJEÇÃO MUNDIAL
O Grande Núcleo, dos anos 1960, participou de exposição de Oiticica em Londres: o trabalho fazia parte do acervo incendiado

Na semana passada, um incêndio, provavelmente causado por um curto-circuito, destruiu uma parcela ainda não determinada, mas por certo extensa, da obra de um dos mais celebrados artistas plásticos brasileiros da segunda metade do século XX. Cerca de 1 500 trabalhos de Hélio Oiticica (1937-1980) cujo valor, especula-se, poderia bater em 200 milhões de dólares estavam depositados em uma sala, no piso térreo de uma casa na Zona Sul do Rio. Enquanto o fogo começava a arder, o arquiteto César Oiticica, irmão de Hélio e guardião do acervo, jantava com amigos no andar de cima. Os mais cínicos, que não sem dispor de argumentos desprezam a arte contemporânea, poderão afirmar que nada se perdeu com a destruição de alguns parangolés capas de aparência entre carnavalesca e molambenta. Especialistas, por seu lado, enquanto aguardam a avaliação final do que foi irremediavelmente perdido e do que foi apenas danificado, já observam que obras fundamentais de Oiticica estão preservadas em museus e coleções particulares em todo o mundo, e que muitas de suas propostas mais originais dependem antes de "instruções de montagem" do que do suporte material (para usar o jargão da crítica de arte). À margem de quaisquer considerações estéticas, no entanto, a tragédia está nas circunstâncias tão peculiarmente brasileiras do episódio: acervos artísticos depositados nas mãos nem sempre capacitadas de herdeiros, em condições rudimentares de conservação.

A crença de que os parentes são as pessoas mais indicadas para cuidar do legado de um artista é, no mínimo, equivocada. A guarda de obras de arte exige a obediência a normas técnicas muito bem estabelecidas, para que o trabalho não seja prejudicado por umidade, iluminação inadequada, traças e outros inimigos da memória. De duas, uma. Ou a família se profissionaliza, ou repassa o acervo a quem tenha condições de cuidar dele. É tarefa que demanda tempo, dedicação e dinheiro. No caso de Oiticica, seus parentes dedicaram-se com afinco a projetos em torno de sua obra. Em 1996, a prefeitura do Rio ofereceu à família um espaço para abrigar o trabalho do artista, que estava guardado num apartamento. No acordo, foi estipulado um pagamento de 20.500 reais mensais à entidade sem fins lucrativos dos herdeiros, que deixaram de ter despesas para manutenção do acervo e ainda passaram a receber. Além disso, tinham exclusividade na prestação de serviços para a montagem de qualquer exposição de Oiticica. Só na mostra Penetráveis, inaugurada no ano passado, receberam 600 000 reais da prefeitura.

Gustavo Stephan/Ag. O Globo
UM ACERVO EM ESCOMBROS
O fogo varreu a sala onde estavam 1 500 obras: ainda não se sabe o que se salvou


Apesar dessas condições, raras no mercado, surgiram desentendimentos e, a partir de 2002, os trabalhos foram gradativamente retirados do Centro de Arte Hélio Oiticica. A alegação era que o espaço tinha goteiras, ratos e condições inadequadas de refrigeração. Mas parte do acervo permaneceu lá até o fim do ano passado, e o convênio só foi extinto neste ano. Outra frente de atuação dos herdeiros foram projetos apresentados para captação de recursos pela Lei Rouanet. Dos 4,5 milhões de reais aprovados pelo Ministério da Cultura, a maior parte foi requerida pela instituição comandada pelos Oiticica. Com orçamento de 1,9 milhão de reais, o projeto mais ambicioso previa a publicação de um catálogo raisonné, restauração, preservação e documentação do acervo e duas mostras internacionais, em convênio com o Museu de Artes Plásticas de Houston. Os herdeiros obtiveram 772.000 reais da Petrobras e conseguiram executar 80% da restauração, 20% da catalogação, além das duas exposições no exterior que contaram com patrocínio da instituição americana. O dinheiro público investido, porém, virou fuligem na casa de César Oiticica.

Essa história de família sintetiza boa parte das distorções que se instalaram na relação entre herdeiros e legados de importantes artistas brasileiros. Amparadas pela legislação de direito autoral e de imagem, as famílias costumam tratar esses acervos exclusivamente como seu patrimônio. Seria absurdo pretender negar a essas pessoas o direito de usufruir financeiramente do fato de serem herdeiras de grandes artistas plásticos, escritores ou músicos. Mas alguns exageros acabam limitando a difusão da obra, na contramão do desejo de qualquer artista. Diante da exigência de pagamento de 150.000 reais para reproduzir sessenta peças de Alfredo Volpi, o Instituto Moreira Sales publicou um caderno de debates sobre o pintor sem ilustração alguma. No exterior, o preço médio é de 100 dólares para reproduções com fins culturais de grandes pintores como Henri Matisse e Salvador Dalí. No Brasil, há de tudo. Escritores fora de catálogo, como ficou Monteiro Lobato durante dez anos, censura a biografias, como a exercida por Vilma Guimarães Rosa, filha do autor de Grande Sertão: Veredas, herdeiros que querem controlar até textos acadêmicos e interferir no trabalho de pesquisadores. Martin Grossmann, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e diretor do Centro Cultural São Paulo, cobra um novo ponto de equilíbrio. "Precisamos encontrar uma nova equação, na qual coleções importantes sejam tratadas com o respeito devido", diz.

Projeto H.O.
DENTRO E FORA
Oiticica no interior de Amor no Ninho, já exposta no MoMA, em Nova York


Não é possível chegar a uma equação razoável sem uma rede de museus mais bem cuidada e uma legislação específica para coleções privadas de interesse público. O próprio Ministério da Cultura reconhece essas deficiências. "Ainda estamos muito atrasados. Hoje, as obras viram apenas um ativo importante para os herdeiros. Sem registros formais, elas também abrem espaço para a lavagem de dinheiro e as falsificações", diz o ministro Juca Ferreira, que busca na experiência internacional alguns exemplos que podem inspirar um caminho brasileiro para a preservação de acervos. Em muitos países, como a França e os Estados Unidos, existe uma alta taxação na hora de transferir as obras para herdeiros. Parte dos impostos acaba sendo paga com uma fração da coleção, que é destinada a espaços públicos. Foi assim com a herança do espanhol Pablo Picasso. Em 1973, quando morreu, o naco destinado ao governo francês deu origem ao museu que leva o nome do pintor, no bairro do Marais, em Paris.

Em meio a tanta dificuldade, algumas experiências auspiciosas tomam corpo no Brasil. A Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, inaugurada no ano passado, representou uma feliz união entre poder público, iniciativa privada e família. Um grupo de empresas, capitaneado pela Gerdau, investiu na construção da sede de 40 milhões de reais, com uso de incentivos fiscais e recursos próprios. O terreno foi doado pelo governo do Rio Grande do Sul. A viúva do pintor, Maria Camargo, fez sua parte: passou à fundação 4 000 obras e 20 000 documentos. O belo prédio, projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza, tem tecnologia sofisticada. Desejo de Iberê em vida, esse sim é um projeto digno da obstinação artística do homenageado.

Com reportagem de Marcelo Bortoloti


O mais doido dos mercados

Kieran Doherty/Reuters
TUBARÃO DA ARTE
Damien Hirst e suas pinturas: exposição só para turbinar os preços


Hélio Oiticica não ganhou muito dinheiro com sua arte. Quando morreu, em 1980, um desenho da série Metaesquema não valia mais que 2 000 dólares. Foi na última década que a cotação do seu trabalho explodiu. Em maio deste ano, o Metaesquema 19 foi arrematado num leilão da Christie’s, em Nova York, por 186 500 dólares, incluindo comissão. Entre 2007 e 2008, a Tate Modern, de Londres, adquiriu oito obras de pequeno e grande porte. Pela instalação Tropicália, a galeria pagou cerca de 850 000 dólares. O mercado de arte é particularmente suscetível a essas oscilações violentas e por isso é um campo de estudos fascinante para a economia. Estudos da arte com o instrumental analítico quantitativo têm sido realizados por economistas como os americanos David Galenson, da Universidade de Chicago, e Don Thompson, da Universidade York, no Canadá. "O mercado de arte é o menos regulado e transparente do mundo", diz Thompson.

Há grande margem para manipulação colecionadores de ponta como o britânico (nascido no Iraque) Charles Saatchi inflam nomes como o do inglês Damien Hirst, criador de um tubarão conservado em formol que teria sido negociado por 12 milhões de dólares, em 2005. A análise de Thompson aponta vários fatores para a construção de uma marca isto é, do nome de um artista no mercado: se suas obras foram vendidas por um galerista da moda, se foram compradas por um colecionador famoso, se foram expostas em instituições de peso (Oiticica valorizou-se muito depois de uma mostra no MoMa, em 1997). Damien Hirst o do tubarão mostra-se um gênio na manipulação desses fatores. Abriu neste mês uma mostra de pinturas, técnica pouco usual em sua obra, na Wallace Collection, museu de Londres que tem respeitável acervo de mestres do século XVIII. As obras expostas não estão à venda: quase todas já foram compradas pelo magnata ucraniano Victor Pinchuk. Thompson observa que a exposição tem um só objetivo: agregar prestígio (e valor) à aquisição de Pinchuk. "Ele poderá dizer aos amigos que seus quadros estiveram nas paredes da Wallace Collection", diz o economista. E pouco importa que os críticos tenham considerado a pintura de Hirst horrenda. "A crítica tem impacto quase nulo no preço de uma obra", afirma Thompson.