sábado, outubro 24, 2009

Às Cegas, de Claudio Magris

A aventura chamada Europa

O romance Às Cegas, do italiano Claudio Magris, revisa conflitos
e cruzamentos culturais que fizeram a história recente. Eterno
candidato ao Nobel, o autor bem que merecia o prêmio


Moacyr Scliar

Thomas Laisné/Corbis/Latinstock

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O italiano Claudio Magris, de 70 anos, sempre aparece entre os favoritos para o Prêmio Nobel de Literatura. Neste ano, às vésperas do anúncio do prêmio, chegou a ser o mais cotado na lista de uma casa de apostas inglesa. Perdeu para Herta Müller, bem menos conhecida. Pôde consolar-se na Feira do Livro de Frankfurt, onde recebeu, no dia 18, o Prêmio da Paz, uma das maiores distinções literárias da Alemanha. Conhecido sobretudo por Danúbio – caleidoscópico ensaio baseado numa viagem que o autor fez, acompanhando o curso do famoso rio pela Europa central até o Mar Negro –, Magris é um escritor extraordinário, cuja obra e trajetória encarnam a multiplicidade da cultura europeia, como o leitor poderá constatar no romance Às Cegas (tradução de Maurício Santana Dias; Companhia das Letras; 384 páginas; 59 reais), recém-lançado no Brasil.

Nascido em Trieste – cidade do Mar Adriático na qual se cruzaram as mais variadas línguas e culturas –, Magris foi professor universitário de literatura alemã. Traduziu para o italiano livros de autores como Heinrich von Kleist e Arthur Schnitzler. Sua obra é caracterizada por uma enorme erudição e por formas narrativas sempre surpreendentes. Às Cegas exigiu muito do autor – foi iniciado em 1988 e só publicado em 2005. Como em Danúbio, temos uma longa viagem no tempo e no espaço – a saga mítica dos Argonautas é constantemente invocada. O protagonista está numa instituição psiquiátrica italiana. Parece sofrer daquilo que em medicina é conhecido como distúrbio de personalidade múltipla, situação em que várias identidades convivem na mente de uma só pessoa. Conversando com o médico, ele assume vários personagens, com nomes, nacionalidades e situações históricas distintas.

Entre eles, há um nativo de Trieste que combate na Guerra Civil Espanhola, torna-se membro do Partido Comunista e passa por dois dos maiores pesadelos históricos da Europa – um campo de concentração nazista e um gulag stalinista. Outra "encarnação" é um marinheiro que se torna governante da Islândia no século XIX. Em cada um desses episódios há uma mulher por quem o protagonista se apaixona e cujos nomes variam: Maria, Marie, Mariza, Norah, Mangawana. O mar, com sua imensidão e seu mistério, é uma referência constante, bem como a aventura, nos modelos dos romances populares do francês Júlio Verne ou do italiano Emilio Salgari. O próprio Magris não se enquadra nessa categoria de ficção – seu livro nem sempre é uma leitura fácil. Mas é literatura realmente digna de um Prêmio Nobel.

Assassinos magnânimos

"A revolução deve ser magnânima; do contrário não é mais revolução. Começa-se punindo os inimigos vencidos, inclusive os canalhas, depois se toma gosto pela coisa e não se acaba mais de punir, de matar, num movimento sem fim; exterminados os verdadeiros inimigos, deve-se eliminar os que não queriam exterminá-los, e depois os que não queriam exterminá-los imediatamente, e depois outros ainda, todos, a revolução deve destruir a si mesma e assim desaparecer do caminho"

Trecho de Às Cegas