sexta-feira, março 27, 2009

Uma questão de princípios João Mellão Neto

A AIG, uma das maiores seguradoras do mundo, causou-me um dissabor doméstico de difícil reparação. Até mesmo por ela, que é especializada em sinistros e imprevistos. Explico.

Tudo aconteceu porque a empresa em questão, mesmo tendo sofrido gigantescos prejuízos em razão da crise, pagou mais de uma centena de milhões de dólares em bônus para os seus executivos. O presidente dos EUA, Barack Obama, entendendo que esse pagamento era indevido - ainda mais porque a AIG só continua em pé à custa de dinheiro público -, exigiu que o valor das bonificações fosse devolvido ao Tesouro. O presidente da empresa afirmou que somente autorizou o pagamento dos bônus porque eles estavam previstos nos contratos de trabalho dos funcionários. E tais contratos haviam sido assinados antes da eclosão da crise.

Criou-se, assim, uma imensa polêmica nos EUA, que acabou por ter reflexos no aconchego do meu lar.

Minha filha, Anna Maria, que está se formando em Administração de Empresas, entende que o pagamento dos tais bônus é revoltante. Assim sendo, Obama está com a razão e a AIG tem mesmo de devolver o dinheiro gasto ao erário.

Minha interpretação é diferente. O respeito aos contratos é um princípio sagrado do sistema. Os contratos devem ser cumpridos em qualquer circunstância, mesmo que uma das partes queira rasgá-los, alegando que se tornaram desvantajosos. A atitude de Obama, no meu entender, é demagógica e inconsequente. Como presidente dos EUA, ele deveria ser o primeiro a defender a inviolabilidade dos contratos.

A discussão lá em casa foi feia. Anninha está há dias sem falar comigo. Ela acha que eu sou um crápula imoral e insensível. Ocorre, assim, um evidente dano moral e emocional. A quem processar? AIG? Obama?

Problemas domésticos à parte, o que cabe, por ora, é expor o raciocínio.

Uma passagem atribuída a Sócrates elucida em parte a questão. Condenado à morte, o sábio, impassível, aguardava o cumprimento da pena. Amigos seus organizam a fuga. Ele resiste.

- Mas, mestre, todos sabem que seu julgamento foi injusto!

- Não importa. Se os homens bons não obedecerem às leis más, por que os homens maus hão de obedecer às leis boas?

Alguns liberais, como Maílson da Nóbrega, localizam o início do capitalismo na Revolução Gloriosa, ocorrida na Inglaterra em 1688. A Bill of Rights, Declaração de Direitos, assumida pelos soberanos, retirava destes o poder de confiscar propriedades, criar tributos ou suspender o cumprimento das leis. A partir de então estavam lançados os pressupostos básicos para o surgimento da livre empresa e da propriedade privada, além de garantir a previsibilidade das leis e dos atos governamentais. A Revolução Industrial só se tornou viável após tudo isso.

O sistema capitalista, ao contrário do que argumentam os seus detratores, se alicerça em sólidas bases morais. Uma delas, senão a principal, é a confiança. Todos confiam em todos porque todos confiam no sistema, cujas leis são cumpridas por todos, porque todos entendem que assim é melhor.

É com base em tais fundações que o crédito se torna viável, uma vez que o comportamento de todos e de cada um se torna previsível.

O fiel cumprimento dos contratos, pelos indivíduos e pelo Estado, torna-se, assim, sagrado. Os contratos, assumidos de boa-fé e voluntariamente pelas partes, devem ser cumpridos integralmente. Nada nem ninguém tem poder para violá-los. E nenhum pretexto - por mais nobre que seja - pode ser invocado para fazê-lo.

Essa previsibilidade, essa certeza de que nada pode ocorrer no sentido de quebrar os compromissos voluntariamente assumidos entre as partes é o sal da terra, o húmus que permite o florescimento do empreendedorismo e da iniciativa. Sem isso nada é possível. Tudo na economia funcionaria na base do toma lá, dá cá, na satisfação imediata das vontades, no consumo em detrimento da poupança, no dispêndio dos recursos em prejuízo do investimento.

A própria Constituição, Anna, é um grande contrato. É uma carta de princípios e compromissos entre o Estado e a sociedade. Sempre existirão aqueles que, sob os mais diversos motivos, se disporão a quebrá-la. Alegarão que o fazem para o bem da Nação ou a felicidade e conveniência do povo. Os governantes bem intencionados jamais se deixarão levar pela tentação fácil que tais apelos proporcionam. Eles sabem que, uma vez quebrado um único contrato, estará aberto o caminho para que todos os demais também o sejam. Esse é um precedente extremamente perigoso. Lula sabe disso. E não há um único chefe de Estado sério que não o saiba também.

Até mesmo a chegada de Lula ao poder, que se deu em clima de concórdia e harmonia, só foi possível depois da Carta aos Brasileiros, em que o então candidato assumiu explicitamente o compromisso de respeitar os contratos. E assim ele vem se comportando desde a sua posse.

É por tudo isso, Anna Maria, que eu defendo o pagamento dos famigerados bônus da AIG aos seus executivos. É por tudo isso, também, que eu repudio a atitude do presidente Obama, que, em busca da popularidade fácil, acabou por mexer com fogo.

Os executivos da AIG merecem esses bônus? A resposta é não. Muitos deles, inclusive, estão se propondo a devolvê-los. A questão está em saber se o Estado ou quem quer que seja tem o direito de confiscá-los. A resposta também é não.

Atribui-se a Abraham Lincoln o seguinte raciocínio: "Quem não tem uma bela casa, que não cobice a do vizinho. Trabalhe, lute, construa a sua. E tenha sempre a certeza de que seu vizinho não a cobiçará também."