domingo, março 22, 2009

Merval Pereira A garantia dos direitos e O papel do Supremo

O GLOBO

O "ativismo judicial" está fazendo com que o Supremo Tribunal Federal esteja no centro das discussões políticas desde que seu presidente, ministro Gilmar Mendes, a partir de uma denúncia da revista "Veja", levou diretamente ao presidente da República uma exigência de apuração sobre uma escuta telefônica clandestina de que teria sido vítima. A transcrição de uma conversa com o senador Demóstenes Torres, confirmada pelos dois, seria a prova de que a Operação Satiagraha, conduzida pelo delegado Protógenes Queiroz, teria grampeado ilegalmente diversas autoridades na seqüência da investigação que levou à prisão do banqueiro Daniel Dantas. Uma investigação da Corregedoria da própria Polícia Federal acabou indiciando criminalmente o delegado por ilegalidades na operação, entre elas escutas telefônicas não autorizadas e a violação de sigilo funcional.

Um grupo de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), recrutados "informalmente" teve acesso a dados sigilosos da investigação, como escutas telefônicas, fazendo papel de polícia judiciária, o que é proibido por lei.

As constantes intervenções do ministro Gilmar Mendes contra os abusos da Polícia Federal nas investigações e prisões levaram a que fosse acusado de estar protegendo o banqueiro Daniel Dantas, a quem concedeu dois habeas-corpus.

A última polêmica tem a ver com a interpretação de uma decisão do ministro Carlos Alberto Direito, que arquivou uma representação do PPS que alegava que são inconstitucionais os decretos 4.376/2002 e 6.540/2008, que autorizam a Abin a manter, em caráter permanente, representantes dos órgãos componentes do Sistema Brasileiro de Inteligência no Departamento de Integração do Sistema Brasileiro de Inteligência.

O arquivamento foi interpretado erroneamente como se o ministro Carlos Alberto Direito tivesse admitido que a atuação da Abin na Operação Satiagraha fora legal. O ministro me disse, no entanto, que decidiu apenas que a Ação Direta de Inconstitucionalidade não é o meio correto para questionar os decretos.

Outra decisão polêmica foi a súmula vinculante sobre o uso das algemas nas operações policiais, que devem ter caráter excepcional. Na verdade, o Supremo não pretendia editar uma súmula vinculante sobre o assunto, mas o fez depois que um delegado usou algemas desnecessariamente e, questionado sobre o pronunciamento do Supremo, disse que aquela decisão "não valia".

Joaquim Falcão, da Fundação Getúlio Vargas, do Rio, e membro do Conselho Nacional de Justiça, considera que a imagem do Poder Judiciário vem se afirmando diante da população. Com base em uma pesquisa nacional realizada pelo Ipespe, ele mostra que a Justiça do Trabalho e os juizados Especiais ou de Pequenas Causas são as instituições mais bem avaliadas pela população, o que demonstraria que a agilidade da Justiça, e sua atuação na base da sociedade, reforçam o seu papel institucional, legitimando um "ativismo" judicial.

O site Consultor Jurídico registrou recentemente que o advogado Saul Tourinho Leal, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), uma instituição de ensino cujo proprietário é o ministro Gilmar Mendes, fez uma tese de mestrado em que compara as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos em sua fase mais ativista, quando foi presidida pelo juiz Earl Warren, nas décadas de 1950 e 60, com precedentes adotados pelo Supremo no Brasil, garantindo direitos fundamentais aos indivíduos, em muitos casos contra a opinião majoritária da sociedade, como a progressão da pena para crimes hediondos ou o direito de um réu responder em liberdade, mesmo condenado, até que sejam esgotados os recursos legais.

Luiz Roberto Barroso, em estudo a ser publicado no mês que vem no volume 4 do livro Temas de Direito Constitucional, ressalta que quando Earl Warren deixou a presidência da Suprema Corte, em 1969, a segregação em escolas e demais ambientes públicos já não era mais permitida; o arbítrio policial contra pobres e negros estava minorado; acusados em processos criminais não podiam ser julgados sem advogado.

"Todas as profundas transformações foram efetivadas sem qualquer ato do Congresso ou decreto presidencial", realça. Barroso considera que esse "ativismo" do Supremo está acontecendo no Brasil por duas razões: primeiro, o Supremo mudou a composição.

Na sua análise, nos primeiros anos da Constituição de 1988, foi mantida a composição do Supremo que vinha do regime militar, que tinha um perfil muito comprometido com a velha ordem, fazia interpretações conservadoras, a jurisprudência ficava alinhada ao que sempre fora.

Nos últimos anos houve uma renovação do Supremo e, hoje, há mais ministros que têm um sentimento ligado ao novo regime, à Constituição de 1988, liberando forças represadas.

O outro motivo é que, para Barroso, o Poder Legislativo vive uma crise de funcionalidade que estimula também as medidas provisórias. A energia política que é necessária para aprovar qualquer coisa no Congresso é tão grande, para compor as maiorias, que é mais fácil atuar por medidas provisórias.

A recente decisão do presidente da Câmara, deputado Michel Temer, de encontrar um artifício legal para que as medidas provisórias não tranquem a pauta do Congresso, também é polêmica do ponto de vista jurídico e é outra forma de as interpretações jurídicas interferirem na política.

Barroso diz que ainda não se deteve a fundo na questão, mas considera que essa decisão frustra o sentido da lei, que é impedir que as medidas provisórias fiquem sem ser votadas. Mas admite que, ao mesmo tempo, o Poder Executivo ter o poder de paralisar a ação do Legislativo também fere a independência dos poderes. "O país precisa mesmo é de uma reforma política, e isso o Supremo não pode fazer."

Sábado, 21 de Março de 2009

O papel do Supremo

Merval Pereira
O GLOBO


O "ativismo judicial" do Supremo Tribunal Federal voltou mais uma vez a ser o tema central do debate político com a decisão de impor 19 condições para que a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, se mantivesse em território contínuo como fora demarcado pelo governo federal. Essa tendência, que foi retomada em 2007 com decisões que tiveram grande repercussão na opinião pública e na vida política do país, como a sobre a fidelidade partidária, o direito de greve no serviço público, o direito à aposentadoria especial, entre outras, está sendo reafirmada pela presidência do ministro Gilmar Mendes no STF, na qual muitos identificam uma estratégia de médio prazo de participar da definição de políticas públicas, tendência que seria majoritária hoje no Supremo.

O constitucionalista Luiz Roberto Barroso faz uma diferenciação entre judicialização e ativismo. O primeiro seria uma consequência do modelo constitucional brasileiro, com uma Constituição muito abrangente, que cuida de muitas matérias, de muitos detalhes.

Já o ativismo é uma atitude, quando o Supremo toma uma decisão política sobre situações que não foram expressamente previstas, nem na Constituição nem na lei.

Joaquim Falcão, diretor do Direito Rio da Fundação Getulio Vargas e representante do Senado no Conselho Nacional de Justiça, diz que o Judiciário pró-ativo caminha em dois sentidos, um político, o das decisões do Supremo, e outro de funcionar melhor, o que legitima seu eventual "ativismo", termo que não agrada a Falcão por conter um sentido de atuar "acima da lei".

O termo foi escrito pela primeira vez pelo jornalista americano Arthur Schlesinger, numa reportagem sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos para a revista "Fortune", em 1947, para identificar os juízes que se consideravam no dever de interpretar a Constituição para garantir direitos.

Tema polêmico na ciência política e no Direito constitucional, as expressões "judicialização da política" ou "politização da Justiça" indicam a expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas, e foram inicialmente utilizadas por Carl Schmitt, na sua crítica ao controle de constitucionalidade de feição política.

No Brasil, o tema foi estudado por Luiz Werneck Vianna, coordenador do Centro de Estudos Direito e Sociedade, do Iuperj, que, investigando as relações entre a política e o Poder Judiciário, publicou "A judicialização da política e das relações sociais" (Rio, Revan, 1999).

Joaquim Falcão considera que o Judiciário, a cada vez que vai ficando mais ágil e mais forte na percepção da população, vai tendo fundamentos para esses avanços. Preocupado com a lentidão do sistema judiciário brasileiro, ele encomendou uma pesquisa de opinião ao Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ibespe) para verificar a percepção do brasileiro sobre o Judiciário, e apresentou os resultados em uma recente reunião do Conselho Nacional de Justiça com juízes de todo o país.

O grau de satisfação com o atendimento recebido da Justiça foi de 53%, sendo que 46% da população se diz "satisfeita". Entre os pontos positivos, destacam-se quase no mesmo nível o acesso à população de baixa renda e o combate às irregularidades.

Em uma avaliação da evolução da Justiça nos últimos cinco anos, depois da aprovação da reforma do Judiciário, 44% consideraram que a situação está melhor. E, quando sentem seus direitos desrespeitados, os cidadãos tendem majoritariamente a "procurar por conta própria uma solução amigável, com conciliação", e a segunda medida é "procurar um advogado".

O que leva Joaquim Falcão a comentar que o que a população quer é mediação, e ser servida por juizados de pequenas causas, cuja agilidade é maior. Mas a maior característica do Poder Judiciário, para os entrevistados, é a lentidão.

Essa lentidão, para Falcão, tem a ver, entre outras coisas, com que o chama de "uso patológico do Judiciário", isto é, as demandas de massa que poderiam ser resolvidas por uma atuação mais ativa dos órgãos governamentais como as agências reguladoras, pois os serviços públicos, como telefonia, são os campeões de processos. "No fundo, é uma transferência de custos do Poder Executivo para o Judiciário", diz Falcão.

Para Luiz Roberto Barroso, o Supremo está atendendo a algumas demandas sociais que o Congresso não atende, porque vive uma crise de funcionalidade, de representatividade, deixou de ser a vitrine da agenda política nacional.

Ele dá um exemplo: no caso das células-tronco embrionárias, uma lei aprovou essas pesquisas, e não houve debate, a lei passou quase em branco. "Mas quando o procurador-geral da República levou o debate para o Supremo, virou um tema na agenda política do país".

No caso da fidelidade partidária, Barroso diz que os ministros pegaram o princípio democrático e com base nele criaram uma regra que diz que, se mudar de partido depois da eleição, perde o mandato. "Isso não está escrito em nenhum lugar, mas eles sustentaram que isso viola o princípio democrático".

O ministro Carlos Alberto Direito, nas suas exigências sobre a reserva indígena de Roraima, também, segundo Barroso, "diz coisas que já decorreriam logicamente da Constituição, como que as Forças Armadas e a Polícia Federal podem entrar na reserva porque aquilo é um território nacional, ou que o usufruto é do solo, e, portanto, os potenciais energéticos e recursos minerais não pertencem aos índios".

Na verdade, as exigências do ministro Carlos Alberto Direito, acatadas pelo pleno do Supremo, são interpretações da Constituição aplicadas a esta situação concreta, vocalizando o sentimento de alguns setores da sociedade que sentiam ameaçada a soberania nacional sobre aquele território, temor que nem o Executivo nem o Legislativo souberam aplacar. (Continua amanhã)