sábado, setembro 27, 2008

Especial-Entrevista: Dominique Strauss-Kahn

No coração do capitalismo

Brendan Hoffman/WPN

NOVA ORDEM
Strauss-Kahn, do FMI: o crescimento mundial será liderado pelos países emergentes


Em alguns anos, não meses, a economia mundial sairá da tormenta – e com feições diferentes. Os emergentes responderão por até 77% do crescimento global, acima dos 65% dos últimos anos. Nos países ricos, o sistema financeiro, engolido por créditos podres, ficará substancialmente menor em relação à economia real. Wall Street será muito mais regulada, e menos exuberante. Quem afirma isso é Dominique Strauss-Kahn, diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, entidade criada no pós-guerra para coordenar as finanças mundiais e evitar o colapso de pagamento de seus países-membros. "Pela primeira vez em muito tempo, a crise não vem da periferia, mas do centro do sistema." Ex-ministro de Economia da França, Strauss-Kahn elogiou o rigor da política econômica brasileira nos últimos "cinco ou seis anos", alertou para o risco inflacionário na América Latina e citou o Brasil entre os países mais preparados para resistir às turbulências. Ele recebeu o editor executivo Marcio Aith em seu escritório, na sede do FMI, em Washington.

Que cara terá a economia mundial depois dessa crise?
Uma cara bem diferente. A crise originou-se no mercado imobiliário americano, mas tem raízes muito mais profundas. A expansão do mercado financeiro superou em muito o crescimento da economia real nas últimas décadas, por meio de uma complexidade nunca antes vista. Já a regulação e a supervisão bancárias não se prepararam para tamanho desafio. Os bancos de investimento puderam rebaixar seus critérios de análise de risco, com o objetivo de elevar lucros, sem ser adequadamente fiscalizados. Portanto, um dos desfechos mais relevantes é que teremos um sistema financeiro menor, mais compatível com a economia real, em um ambiente mais controlado, mais regulado.

Esta crise marcará o fim da hegemonia do dólar como reserva de valor?
Ouvi essa profecia muitas vezes. Será que ela se realizará algum dia? O curioso é que, apesar de a crise ter se originado nos Estados Unidos, de falhas no sistema regulatório do país, não se observa nenhum pânico em relação ao dólar, o que seria de esperar. Ao contrário, o status do dólar continua intacto.

Países como a China nunca tiveram tantos dólares guardados para se proteger de crises. Parte desses recursos foi usada para financiar o déficit americano e as agências hipotecárias que assumiram riscos além de suas possibilidades. Qual foi o papel da China nisso tudo?
A crise eclodiu no setor financeiro americano. Mas também tem relação com esses desequilíbrios, que terão de ser abordados mais cedo ou mais tarde. Para evitar crises tão devastadoras como essa, os Estados Unidos serão provavelmente obrigados a reduzir seu déficit externo. Taxas de poupança maiores nos Estados Unidos, tanto pública quanto privada, poderão ser parte da solução do problema. Assim, a China terá a possibilidade de mudar seu modelo de crescimento. Isso vai exigir um regime cambial mais flexível (hoje o governo chinês mantém o valor da moeda local atrelado ao dólar, para preservar a competitividade de suas exportações). O valor do renminbi terá de ser progressivamente revisto.

Qual é o risco de a crise se espalhar pelo sistema bancário europeu?
Os bancos europeus e de outras regiões estão diante de prejuízos talvez tão volumosos quanto os registrados pelas instituições americanas. A diferença é que não há, na Europa, um modelo de bancos exclusivamente de investimento. São grandes conglomerados com múltiplas atividades. Suas perdas têm sido compensadas com lucros obtidos em outros serviços. Isso não significa que não seja necessário instituir um plano de contingência na Europa. A solução para a crise tem de ser mundial. Os europeus também deveriam adotar um plano de ação que possibilitasse o abastecimento de liquidez, a recompra dos ativos desvalorizados e a injeção de capital nas instituições financeiras.

Os bancos brasileiros estão preparados para enfrentar a contração de crédito?
Os bancos da América Latina estão mais fortes porque se expuseram menos a instrumentos financeiros exóticos. 
O impacto direto para eles será baixo. Mas a América Latina não está fora da globalização. É claro que haverá conseqüências para o crescimento da região, mas não é possível falar da América Latina como um conjunto homogêneo.

Como vê o impacto da crise no Brasil?
Vejo o Brasil como um dos países que melhor vão resistir às turbulências, principalmente pelo que foi feito nos últimos cinco ou seis anos. O Brasil de ontem não tem nada a ver com o Brasil de hoje. O país avançou muito. Tem políticas fiscal e monetária muito sólidas. O Brasil não está imune, é claro. Se a crise mundial se prolongar, o que é bastante provável, seu crescimento será afetado.

O atual ritmo de crescimento é sustentável? Quais as previsões do fundo para o Brasil e para a região?
O Brasil deverá crescer um pouco abaixo de 5% neste ano, e cerca de 4% no ano que vem, segundo nossas estimativas. Para a América Latina, a previsão é de cerca de 4,5% para este ano e em torno de 3,5% para o próximo. Mas o problema da região não é o crescimento. É a inflação. Muitos países têm taxas acima de 10%. Mesmo nos países que têm inflação de um dígito, o número ainda está acima das metas. A inflação está em todo lugar na América Latina e resolvê-la é um problema complexo, pois muitos países pobres importam inflação por causa da alta de alimentos e combustíveis.

Em um artigo publicado em fevereiro, o senhor aconselhou os países a ampliar seus gastos públicos para ajudar a evitar uma recessão mundial. O risco de colapso mundial pôs fim ao rigor fiscal do FMI? Ao menos é assim que a mensagem foi recebida, no Brasil e na região.
Fico feliz em saber que o Brasil e a região continuam a dar ouvidos ao FMI. O que eu disse é que, para alguns países em que isso é possível, a indução ao crescimento é uma segunda linha de defesa, depois da redução de juros. Não significa que todos possam fazer isso. Para falar a verdade, era uma recomendação mais aos Estados Unidos e à China – no caso chinês, para tentar dar à sua economia uma nova orientação, menos voltada à exportação e mais ao consumo interno.

Qual é o papel dos países emergentes na solução dessa crise?
Vital. Essa crise se dá num contexto muito particular, em que a média de crescimento dos países emergentes é bastante alta. Mesmo que os emergentes sejam afetados, se a China, por exemplo, desacelerar de 11% para 9%, ainda assim são 9% ao ano. É diferente de os países europeus desacelerarem de 3% para 1%. Entre 2003 e 2007, o crescimento dos emergentes representou 65% da expansão do PIB mundial. No ano que vem, deverá subir 77%. Ao final, se esse crescimento se sustentar, os emergentes terão feito a diferença.