domingo, setembro 28, 2008

DANUZA LEÃO

Se eu pudesse



Rasparia a cabeça, fumaria 2 cigarros ao mesmo tempo e tomaria vodca dupla, sem gelo, num copo de geléia


ACORDEI hoje pensando que, se eu pudesse, mudava minha vida toda; não que ela esteja ruim, mas só para ver que ela poderia ser diferente.
Me desfaria de muitas coisas: da minha casa e de quase todas as roupas. Afinal, quem precisa de mais de dois pares de sapato, dois jeans, quatro camisetas e dois suéteres, sobretudo quando está mudando de vida?
Se eu tivesse jóias, enterrava todas elas na areia da praia para que um dia alguém enfiasse a mão na areia, brincando, e tivesse a felicidade de encontrar um colar de brilhantes.
Seria lindo, não? Das garrafas de champanhe guardadas cuidadosamente na horizontal, daria para abrir mão, sem nenhum remorso; champanhe, além de engordar, não passa de um espumante metido a alguma coisa e nem barato dá, de tão fraquinho que é.
Dos vinhos, mais fácil ainda. É um tal problema ter vinhos em casa, abrir a garrafa e descobrir que viraram vinagre, que se acaba chegando à conclusão de que nada melhor do que uma boa vodca, com a qual sempre se pode contar.
E as amizades? Aliás, as amizades, não: as relações. Ah, se tivesse coragem rasgava o caderno de telefones e fazia outro, só com o nome das pessoas que estão guardadas dentro do coração. Aliás, para essas nem precisaria de agenda.
Se pudesse, seria vegetariana, passaria as noites em claro e teria muito amor por todos os bichos e pelas crianças. Mas como não gosto de bichos (só de gatos) e não tenho nenhuma paciência com crianças, a não ser as minhas, vou ter que atravessar a vida levando essa pesadíssima cruz; afinal, ficou combinado que de certas coisas não se pode não gostar, e se não gostar, não se pode dizer.
Se pudesse, me transformaria numa pessoa sem passado e sem futuro; iria para um lugar esquisito onde não entenderia a língua do povo, ninguém entenderia a minha e ninguém conseguiria me fazer sofrer, pois a capacidade de sofrer é um bem pessoal e intransferível. Seríamos todos, assumidamente, estranhos, como somos no edifício em que moramos, no local de trabalho, dentro da nossa própria família. Ou você pensa que as pessoas se conhecem só porque se telefonam e jantam juntas?
Se eu pudesse, acordaria hoje de madrugada e sairia descalça, só com um casaco em cima da pele, e iria molhar os pés na água do mar, sozinha. E depois ia tomar café num botequim, em pé, como fazem os homens.
Se eu pudesse, faria uma linda fogueira com meus casacos de pele para saber como vivem os que não têm, nunca tiveram nem nunca vão ter nenhum. E aproveitando o embalo, cortaria os fios do telefone, jogaria o celular na tela da televisão e o computador pela janela.
Se eu pudesse, rasparia a cabeça, fumaria dois cigarros ao mesmo tempo e tomaria uma vodca dupla, sem gelo, num copo de geléia. E pegaria uma tesourinha para picar os talões de cheques, cortar os cartões de crédito, carteira de identidade, o CPF, e o passaporte, sem pensar um só instante nas conseqüências, e sem um pingo de medo do futuro. E jogaria no lixo meus lençóis, meus travesseiros de pluma, meu edredom, e engoliria minhas pestanas postiças, só para aprender que a vida não é isso.
Se eu pudesse, esqueceria do meu nome, do meu passado e da minha história, e iria ser ninguém.
Ninguém.
Pois é, tem dias que a gente acorda assim; mas passa.