27/8/2008 |
Ao falar das relações entre os Poderes, em um evento promovido em São Paulo por uma entidade empresarial, o presidente do Senado, Garibaldi Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte, constatou o que está aí à vista de todos - a crescente desenvoltura com que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem exercido o papel de criador de leis, ao cumprir a sua função essencial de julgar se as normas em vigor e os atos delas decorrentes estão de acordo com os princípios constitucionais. “O Judiciário não poderia fazer o que está fazendo”, protestou, exemplificando com a decisão do Supremo de estabelecer regras da fidelidade partidária para os detentores de mandatos legislativos. Reconheceu, no entanto, que o STF se expande “no vácuo” de um Congresso Nacional cujos trabalhos são basicamente pautados pelo Planalto. Não é de hoje que o titular do Senado, eleito no ano passado para completar o mandato do alagoano Renan Calheiros, que renunciou ao cargo para evitar um processo de cassação, se mostra igualmente desenvolto nas críticas ao Executivo e aos seus pares. No primeiro caso, pela freqüência sem precedentes com que recorre ao instituto “esdrúxulo” das medidas provisórias (MP) para, afinal de contas, governar. No segundo, pela mansidão com que deputados e senadores se submetem à hegemonia presidencial, incapazes até mesmo de criar um filtro pelo qual só passariam, para votação, as MPs que efetivamente atendessem aos requisitos de urgência e relevância. Daí o estado de “extrema-unção”, na metáfora de Garibaldi, a que chegou o Parlamento. Mas desta vez ele acusou também o Judiciário de exorbitar. Talvez convenha separar os problemas, apesar de suas conexões óbvias, para focalizar o que têm de específico. Em primeiro lugar, o governo Lula montou - por métodos notórios que tiram proveito do oportunismo e escasso senso de decência da maioria dos políticos - uma base parlamentar de proporções tais que lhe assegura, no mínimo, o controle sem contestação da agenda do Legislativo. O máximo que os congressistas pretendem é mexer nas regras de tramitação das medidas provisórias para que não obstruam as demais votações. A rigor, nem mesmo a oposição tem interesse em coibir o uso abusivo das MPs - na expectativa de que o instrumento lhe possa ser do mesmo modo útil quando voltar ao poder. Além disso, não é que, se o governo deixasse o Congresso à vontade, ele teria coesão e descortino suficientes para aprovar um número expressivo de projetos de interesse nacional. Quanto ao chamado protagonismo do Supremo, não se trata apenas de ocupação de espaços deixados vagos. Em sistemas institucionais como o do Brasil, não costumam ser pétreos os limites à atuação das suas instâncias judiciais máximas - entre interpretar as leis e fazer leis. Os especialistas citam com freqüência o exemplo dos Estados Unidos, onde a tradição legislativa da Suprema Corte remonta ao século 19, quando ela definiu todas as normas de comércio interestadual no país. Mais recentemente, entre meados da década de 1950 e fins da década seguinte, sob a presidência de Earl Warren, a Corte reagiu à inércia conservadora do Capitólio tomando decisões histórias sobre segregação racial, direitos civis, separação entre religião e Estado, entre outras. E foi o Supremo americano, e não o Congresso, que em 1973 afirmou o direito ao aborto, no célebre processo Roe vs. Wade. Hoje, no Brasil, sob a presidência do ministro Gilmar Mendes, que prega “a pedagogia dos direitos fundamentais”, o STF tomou a si o que entende ser o aperfeiçoamento dos padrões de conduta da área pública, com a aprovação das súmulas para delimitar o uso de algemas e coibir o nepotismo - gerando ora polêmica, ora o aplauso de uma opinião pública farta do patrimonialismo. Só depois da primeira decisão é que o Congresso se animou a discutir um projeto de lavra própria a respeito. Depois da segunda, pôs-se a procurar brechas para a sua burla, como a grotesca proposta do senador Mozarildo Cavalcanti, do PTB de Roraima, de criar cotas para a contratação de parentes por parlamentares - “três primos, dois tios…”, ridicularizou Garibaldi. Em suma, o Supremo se destaca entre as instituições, enquanto o Legislativo patina no descrédito, vítima de sua própria omissão e da voracidade com que o Executivo usurpa as suas funções precípuas. |