sexta-feira, agosto 01, 2008

Juntando os cacos de Doha editorial O Estado de S. Paulo







O mundo fica mais perigoso para o comércio internacional com o colapso da Rodada Doha. A imposição da lei do mais forte será muito mais fácil do que seria, nos próximos anos, se os negociadores tivessem chegado a um acordo modesto, mas aceitável para todos. As normas em vigor, uma herança da Rodada Uruguai, concluída em 1994, são suficientes para criar um mínimo de ordem, mas não para estabelecer um jogo equilibrado entre economias de todos os tamanhos. O risco mais evidente, agora, é o do aumento dos subsídios, com a aplicação da nova Lei Agrícola dos Estados Unidos, aprovada neste ano. Além disso, o apelo ao protecionismo agrícola poderá crescer em muitos países, principalmente em grandes mercados como a União Européia, a China e a Índia. O Brasil será um dos mais prejudicados, se essas possibilidades se confirmarem, assim como seria um dos grandes ganhadores, no caso de um acordo global.

Uma rodada bem-sucedida teria produzido três grandes benefícios: um comércio mais amplo, porque mais livre e mais eqüitativo, mercados mais seguros para todos os produtores e a superação de alguns velhos conflitos. A multiplicação de processos na OMC deverá ser uma das conseqüências e o governo brasileiro, segundo o chanceler Celso Amorim, está disposto a iniciar novas ações contra subsídios americanos.

Será preciso deixar a poeira assentar e pensar com calma em como juntar os pedaços, disse o diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, na terça-feira, depois de admitir o fracasso da reunião ministerial de Genebra. Também será necessário, segundo ele, tentar preservar alguns avanços conseguidos ao longo de sete anos de negociações. Preservar como? Guardando-os como pontos de uma nova partida, quando e se as discussões forem retomadas?

Por enquanto, só a representante dos Estados Unidos, Susan Schwab, propôs uma resposta concreta a essa questão. Ela sugeriu reiniciar as negociações e estabelecer acordos sobre pacotes parciais. Esses acordos entrariam em vigor antes da conclusão da rodada. Para isso, seria necessário abandonar o critério inicial. Por esse critério, nada se considera acordado antes de tudo estar decidido. É um padrão de segurança habitualmente adotado em negociações muito amplas. Tenta-se evitar, com esse sistema, o risco de fazer concessões sem contrapartida.

A idéia de Schwab, segundo o chanceler brasileiro, dificilmente seria aceita pela maioria dos envolvidos na rodada. Emergentes só fariam certas concessões, argumentou, se conhecessem claramente seus ganhos na área agrícola. O argumento parece razoável e realista, mas talvez valha a pena examinar um pouco mais a proposta da embaixadora americana.

A primeira tarefa, naturalmente, seria relacionar os pontos sobre os quais já há concordância e as concessões mais importantes postas sobre a mesa. Por exemplo: em 2005, em Hong Kong, os negociadores americanos e europeus admitiram eliminar até 2013 os subsídios à exportação. Estariam dispostos a manter essa oferta? Qual seria o custo?

De fato, houve acordo sobre muitos pontos até o momento do impasse na reunião de Genebra. O próprio ministro Celso Amorim reconheceu esse dado. Nessas condições, a idéia de uma colheita antecipada (early harvest), como a sugerida pela representante comercial dos Estados Unidos, pode ser razoável para todos os participantes da rodada. Por que não tentar pelo menos um detalhamento da idéia - se a embaixadora Schwab estiver de fato disposta a sustentá-la?

Quanto mais tempo as negociações ficarem suspensas, mais difícil será juntar seus cacos e mais improvável será a recuperação dos pontos acertados até agora. As trocas de comando político nos Estados Unidos e na União Européia poderão criar novas escalas de prioridade - e os novos governos serão provavelmente mais sensíveis às vozes protecionistas.

Muitos milhares de horas de negociações foram gastos nos últimos sete anos, na Rodada Doha, e pelo menos alguns avanços importantes foram realizados. Todos se arriscam, agora, a ver esse enorme investimento ir pelo ralo. O prejuízo será especialmente grande, para a maioria dos países, se a perda desse esforço resultar no enfraquecimento da OMC e em rachaduras no sistema multilateral.