domingo, julho 27, 2008

PERTO DO CRISTO, LONGE DE DEUS 1 - UMA TRAGÉDIA CARIOCA, UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA

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Vocês certamente acompanham, como eu, cheios do horror o noticiário que dá conta da onipresença do narcotráfico na campanha eleitoral do Rio de Janeiro. Nem poderia ser diferente, não é? Se ele está presente no dia-a-dia dos cidadãos, como em nenhum outro lugar do país, por que se ausentaria agora? Observem que, em graus variados, do mais escancarado comprometimento à velha tática de fingir-se de cego, não há político carioca que não tenha, de algum modo, se deixado contaminar por aquilo que é uma tragédia moral, social, econômica e, agora, também política.

Candidatos sobem o morro — alguns com a autorização dos “Senhores da Guerra” locais; outros com um aparato de segurança —, e todos fazem um esforço para fingir não ver o que está ali, diante dos seus olhos, diante dos olhos de toda gente. Longe de temer a publicidade, com a presença da imprensa, os bandidos intimidam abertamente os jornalistas. Estão deixando claro: ali é outro país; ali é outro estado; naquele território, a Constituição Brasileira e os demais códigos que organizam a vida em sociedade não valem.

Há pelo menos uma década escrevo sobre a necessidade de as Forças Armadas brasileiras entenderem que se trata, sim, em todas as nuances necessárias, de uma guerra. Partes do território brasileiro foram anexadas pelo Estado Global do Narcotráfico, ainda que seus soldados sejam brasileiros dedicados à tarefa mercenária. Em vez de um plano organizado de intervenção para devolver à nacionalidade o que lhe foi seqüestrado, o Exército acabou se envolvendo numa malfadada operação de proteção a um projeto eleitoreiro de um dos políticos que participam dessa celebração macabra. Há muito tal intervenção se faz necessária: desde quando ficaram evidenciadas a anexação de partes do território e a incapacidade da polícia de responder ao desafio. Ao contrário: ela foi contaminada pelo crime organizado, da base ao topo da hierarquia.

Nota-se, agora, que o tráfico, sob o silêncio cúmplice das forças instituídas e legais, já se infiltrou também na política e disputa espaço na representação democrática. A infiltração de instituições de estado pelo crime é nova? Ah, não! É coisa antiga. Nasce... junto com o estado!!! Aquele que é considerado um de nossos primeiros sambas gravados, de Donga e Mauro de Almeida, já cantava:
O chefe da polícia, pelo telefone, manda me avisar
Que na carioca tem uma roleta para se jogar
O chefe da polícia, pelo telefone, manda me avisar
Que na carioca tem uma roleta para se jogar.

Observem que não estou chamando a atenção, então, para uma questão que já nasce com a formação das primeiras burocracias: o seu desvio de função. O que destaco é outra coisa: estas forças já não se conformam mais com seu papel marginal na sociedade. Agora elas reivindicam a condição de uma representação política. Sempre que vem à luz um desses manifestos de organizações criminosas, a linguagem apela — que ousadia!!! — à retórica da luta dos oprimidos (os bandidos) contra os opressores (os que não são bandidos, suponho...).

O Rio é dotado de particularidades geográficas que explicam a visibilidade maior que o crime tem por ali. Mas que se considere: a criminalidade na cidade é, de fato, gigantesca. Atribuí-la a questões sociais é escarnecer da inteligência do público e da lógica, ou a criminalidade seria mais ou menos uniforme no país — ao menos no centro-sul. E isso é falso. É que, ao lado daquelas particularidades de geografia, há as de história: em nenhum outro lugar, a exemplo do que fizeram autoridades do município e do estado nas últimas três décadas, o Poder Público trabalhou em parceria tão estreita com o crime disfarçado de liderança comunitária. A malandragem dos que se aproximaram dos bandidos para obter vantagens se somou à ingenuidade e má-fé da demagogia esquerdista ou populista, segundo as quais aquela sociedade atravessada pelas rotina do crime tinha algo a “ensinar” ao asfalto. Não tinha. Ela queria — e quer —, como todos nós, estado de direito e democracia.

Cometeu-se o crime — e quantos textos escrevi a respeito e quantas vezes fui tachado de reacionário!!! — de imaginar que os morros cariocas formavam mesmo uma outra civilização, que tinha direito a valores próprios, a uma cultura própria, a uma visão de mundo própria. Durante muito tempo, a imprensa politicamente correta chamou as incursões policiais nas favelas de “invasão” — como se um estado imperialista resolvesse ocupar um outro. Deu nisso que estamos vendo: o narcotráfico agora reivindica uma “fala”. Ainda não o faz de modo explícito: está procurando eleger os seus “candidatos” para tanto.

E por que não o faria? Candidatos a prefeito e a vereador passam por banquinhas em que trouxinhas de maconha e papelote de cocaína são vendidos a céu aberto, assim como se vendessem o inocente churrasquinho de gato, a pipoca doce colorida, o quebra-queixo, a machadinha, aquele sorvete feito de gelo e groselha que já embranquecia à primeira lambida — delícias passadas de um país que perdeu a infância sem conseguir chegar à vida adulta. Nada disso! É tráfico de maconha mesmo. É tráfico de cocaína mesmo! E os postulantes a cargos de homens e mulheres de estado têm de passar por aquilo, fingindo não ver: “Não olha, não olha”, ordena um assessor. Em outras palavras, recomenda-se a cumplicidade. Até parece que alguma tribo “isolada” chamou esses valentes para um ritual de canibalismo, e eles devem ser antropologicamente corretos, não se metendo nos costumes nativos.

Vocês sabem: sou caipira, do interior. No tempo em que fui moleque de sítio, a gente passava pelas plantações disso e daquilo. A cada pouco, na beira do caminho, parava para olhar um pé ou outro da lavoura. A quem visse de fora, sem conhecer o riscado, a coisa pareceria estúpida: “Como é que esse vai saber se a praga tomou tudo vendo uma planta só de vez em quando?” A resposta é simples e sábia: se você não encontrasse lagartas e pulgões nas plantas à beira do caminho, isso não dava a certeza de que eles não pudessem estar lá no meião, claro, mas, ainda que estivessem, a situação tendia a não ser grave. Se, no entanto, o mal já podia ser encontrado na margem da lavoura, aí era quase certo que a vaca já tinha ido para o brejo. Bastava entrar plantação adentro e constatar o estrago surdo das pragas. Se começam a aparecer, com desassombro, os candidatos do tráfico, então é sinal de que já temos os eleitos do tráfico — é procurar para achar.

Mas as nossas Forças Armadas estão aí, prontas para salvar a pátria do..., da..., de..., do quê? Sei lá eu. Nossas Armas, aliás, embora não estejam entre as maiores do mundo, devem rivalizar com as maiores em número de oficiais-generais. Assistem inermes, sob o silêncio cúmplice dos Poderes Instituídos, à ascensão política do narcotráfico. Não! Não vai nada de apocalíptico neste texto. Não quando enterramos, por ano, 50 mil mortos vítimas da violência.

Repetirei o meu bordão para o Rio (uma adaptação de que tratarei outra hora): "Pobre Rio! Tão perto do Cristo, tão longe de Deus!"