domingo, julho 27, 2008

Democracia grampeada-Ruy Fabiano

blog do Noblat 26/7

A declaração do ministro da Justiça, Tarso Genro, de que todos devem se preocupar ao falar ao telefone, pois a praga do grampo – o legal e o ilegal - é incontrolável, oficializa e dá contornos de normalidade a uma imensa anormalidade: o Estado Policial.

A gravidade da declaração, partindo de quem partiu – da autoridade incumbida de evitar tais anomalias -, não obteve repercussão à altura. E esse é outro fato digno de espanto.

A banalização de um recurso extremo, só admissível em casos estritos, sob autorização judicial, fere um dos direitos elementares da democracia: o direito à privacidade. E a naturalidade com que a constatação foi recebida mostra que o país começa a regredir em relação às conquistas da redemocratização.

Assimilou na prática o conceito de "democracia relativa" que o ex-presidente Geisel quis sustentar ao tempo do regime militar. No primeiro governo pós-64, o marechal Castello Branco cunhou a expressão "democracia à brasileira", sugerindo que era preciso adaptá-la às circunstâncias e peculiaridades do país.

Sobral Pinto, o lendário advogado católico que defendeu Luiz Carlos Prestes ao tempo da ditadura do Estado Novo, protestou, dizendo que não existia tal democracia. Existia, dizia ele, farofa à brasileira, peru à brasileira, mas democracia, não: ou era ou não era, sem adjetivos, molhos ou temperos.

O Estado Policial em curso pretende desmentir Sobral e reviver Geisel e Castello. Democracia sem privacidade. Democracia com grampos. Imaginar que, na luta contra o crime, vale tudo é uma imensa ingenuidade. Quando se admite burlar a lei, suprimir direitos em nome de uma meta louvável, nem se atinge a meta – já que os supostos criminosos passam de réu a vítima e são soltos e indenizados -, nem se inibe o crime.

Ao contrário, ele sai fortalecido, pois a mensagem que fica é de que a lei é impotente para combatê-lo. Somente transgredindo-a é possível obter resultados. É o que pensam as milícias que atuam nas favelas cariocas, e acabam agravando um quadro que prometiam combater. A lógica das milícias é a mesma que banaliza os grampos.

Quando os personagens em questão são notoriamente vilões, todos aplaudem, sem, no entanto, perceber que tal método pode atingir – e fatalmente atingirá - inocentes.

Prova disso é a declaração do ministro da Justiça. De transgressão em transgressão, chegou-se ao ponto em que toda a cidadania está sob ameaça de ter sua privacidade violada. E essa violação nem sempre terá como alvo gente incriminada, nem como objetivo a investigação policial. Poderá ser usada para os fins mais torpes – e ninguém a controlará, conforme já adiantou o ministro.

Diante disso, que sentido faz a Câmara dos Deputados prosseguir com a CPI do Grampo? Ela existe tendo em vista uma anomalia – a violação indiscriminada e ilegal da privacidade - que o ministro da Justiça já considerou natural, institucionalizada e fora de controle. Nada menos.

Ou a Câmara desiste de combatê-la – e, tal como o ministro, familiariza-se com ela - ou, ao contrário, o convoca para que esclareça esse ato de lesa-democracia. Se tal declaração nada gerar em sentido oposto, o caminho estará aberto para que novas violações sejam perpetradas com a mesma naturalidade.

Aliás, já está. Há dias, o líder do governo na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), questionou a legitimidade de um instrumento vital à democracia, uma conquista anciã da civilização, o habeas corpus. E o Tribunal Superior Eleitoral impôs censura à internet, proibindo que nela se fale em candidatos e candidaturas.

Como se não bastasse, não faltam, no âmbito do governo e de sua base parlamentar, quem, sistematicamente, questione a liberdade de imprensa, considerando-a nociva ao bem comum.

De violação em violação, se ninguém se opuser, nem se espantar, estaremos em breve sob a égide da relatividade institucional, sonhada por Geisel e Castello. O problema é que não há nenhum Sobral Pinto à vista (nem a prazo).