Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 13, 2008

Os porões da vilania Gaudêncio Torquato

''Quando a Polícia Federal vai fechar o Congresso?'' A provocação, feita por um internauta nesta última semana, na esteira da operação que deteve 17 pessoas, suspeitas de cometerem crimes financeiros, é reveladora do estado de espírito de parcela significativa da sociedade para com a classe política, ao mesmo tempo que denota acolhimento de posições só explicáveis na ditadura. Todas as vezes que as massas vêem na telinha colorida pessoas famosas, algumas sonolentas e de pijama, sendo surpreendidas na intimidade por batalhões armados até os dentes, apuram o olhar e acendem a atenção como se estivessem a acompanhar o último desfecho de Eliot Ness contra Al Capone e seus mafiosos. Desta feita, o último episódio da série ocorreu nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro. A catarse emerge quando celebridades, abrindo a porta de ricas mansões, estendem as mãos em direção às algemas. Ali se completa o mote que percorre as ruas, depois de consagrado pelo ministro da Justiça, Tarso Genro: ''Neste país, não é só ladrão de galinha que vai preso.''

Se há uma lei que permite a detenção de indiciados, com a invasão de lares e sob presunção de culpa, e que ainda dá direito à filmagem espetaculosa de prisões, não se tira a razão de Tarso, para quem a letra constitucional dá proteção aos atos. Mas não se pode concordar com o exagero: ''A não ser que se produza uma lei dizendo que só os pobres podem ser algemados.'' Nem imbecis concordariam com a esdrúxula tese. Se o ''apego à verdade'' ilumina as ações da Polícia Federal, conforme se pode aduzir do nome em sânscrito da operação Satiagraha, que flagrou gente famosa, entre as quais o investidor Naji Nahas, o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta, o banqueiro Daniel Dantas e outros membros do seu Banco Opportunity, é oportuno distinguir o que é versão e verdade no painel onde contendores do jogo político procuram fazer valer sua leitura sobre este momento do País. O exercício se faz necessário diante da evidência de que a detenção dos chamados perfis de ''colarinho-branco'', a par do sentimento de que, finalmente, a balança da Justiça brasileira passou a aferir o peso de todos, também passou a ser utilizada como alavanca de marketing.

O Executivo tem o direito de exibir o poder de fogo da Polícia Federal para mostrar que, sob sua égide, os olhos do Estado estão mais vigilantes e seus braços, mais fortes para conter a fúria de assaltantes aos cofres públicos? A resposta é sim. Se o Estado implanta um sólido aparelho para combater a criminalidade, o governo que o dirige detém a condição para propagar tal política. Faz parte de sua crença, de seu estilo e de sua identidade. Até aí, tudo bem. Quando, porém, a estrutura de controle e repressão ultrapassa limites impostos pela própria lei, adotando métodos pirotécnicos para dar visibilidade aos feitos, rompe-se a linha do bom senso. Nesse instante, a substância do evento cede lugar à estética do espetáculo. Cristaliza-se a ''verdade'' mcluhaniana ''o meio é a mensagem'', a qual, como se sabe, se transformou em eixo central do teatro estatal, onde governantes aparecem como estrelas brilhantes da constelação. Portanto, há de se distinguir entre o legal e o moral. O que se vê, geralmente, é o estupro da norma pela violência moral. Quando isso ocorre, o caminho para a tirania é curto. O presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, põe o dedo na ferida.

A propósito, Maquiavel conta, nos Discursos sobre Dez Primeiros Livros de Tito Lívio, que um romano rico, depois de dar comida aos pobres durante uma epidemia de fome, foi executado por seus concidadãos. O argumento: o rico pretendia fazer seguidores para se tornar um tirano. A historinha nos remete para estes tempos de políticos e governantes vestidos de santos e heróis, com sua imagem alçada ao altar da fama graças à comida oferecida aos necessitados e à arte de usar o palco para desfiles pirotécnicos. A filantropia, a caridade, a assistência social, o altruísmo e a repressão às ilicitudes são, sem dúvida, coisas admiráveis, mas devem pertencer ao arsenal da fortaleza ético-moral do Estado. Dirigentes precisam ter cuidado para separar o campo da gestão pública, que dirigem, da seara da promoção pessoal, que ambicionam. O que se vê, às vezes, é governante fugindo das responsabilidades quando a coisa é feia.

Veja-se esse desastre no Pará, que bem merecia uma intervenção de guerra dos aparatos policiais. O governo estadual fica alheio à crise que assola um de seus estabelecimentos hospitalares. A conta dos bebês mortos na Santa Casa de Misericórdia de Belém só este ano chega a 262. A denúncia do descontrole caiu no vazio. Já no Rio, o caso dos três rapazes do Morro da Providência virou página do passado. E os gritos do pai do garoto João Roberto Amorim, de 3 anos, fuzilado por policiais, daqui a pouco serão abafados por ecos seqüenciais da guerra urbana que tomou contou daquela metrópole. A tragédia social brasileira parece não ter fim. Qual a operação especial do governo para evitar que cerca de 115 mil crianças morram anualmente por fome? Como isso se explica diante da montanha de bolsas de assistência que o governo distribui? Somos o país onde desaparece mais gente por ''morte matada'', 50 mil mortos por ano, quase seis brasileiros por hora. Com 3% da população mundial, o País concentra 9% dos homicídios do planeta. Nos últimos 20 anos, a taxa de mortalidade por homicídios no Brasil aumentou 130%, de 11,7 para 27 por 100 mil habitantes. Que país pacífico é este? O caos se generaliza. Nossas vergonhas se acumulam na escala de ineficiência das estruturas de atendimento social.

Se o ''apego à verdade'' pode ser um ótimo lema para governos democráticos, operações do tipo Satiagraha se fazem necessárias em quase todos os espaços públicos. Que a Polícia Federal entre nas entranhas profundas e corruptas do País. Sob pena de continuarmos a assistir à peça pela metade, o Brasil em versão resumida, onde ''mocinhos'' prendem ''bandidos'', mas deixam incólumes gigantescos porões da vilania.

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