Balada dos famosos
Acompanho com interesse, por exemplo, o caso de Amy Winehouse. Ela é um talento enorme, não apenas como cantora (melhor em estúdio do que ao vivo), mas também como compositora (de canções como Rehab, You Know I''m no Good e Love Is a Losing Game no CD Back to Black), e no entanto é muito mais notícia por seu visual e por suas encrencas. Algumas pessoas dizem que ela se autodestrói - a começar por ela mesma, basta prestar atenção em suas letras - e que por isso ela não é um ''exemplo'' para os jovens. Eu também gostaria que ela se cuidasse mais, mas não tenho nada a ver com isso. Sei que os shows são hoje parte substancial do faturamento da indústria musical, tanto que os velhinhos todos têm vindo a países como o Brasil, e talvez Amy precise diminuí-los. Mas o que quero dela são as canções, não um modelo de virtude.
A confusão entre vida e obra tomou proporções absurdas na atualidade, cem anos depois do modernismo, que tanto lutou para separá-las. Uma coisa é avaliar o trabalho de uma pessoa, outra é julgar seu modo de ser. Isso acontece mais ruidosamente ainda nos esportes, até porque a exposição pública é no mínimo semanal. Outro dia uma torcida de clube brasileiro levantou uma faixa ordenando que os jogadores abandonem as ''baladas'', as noitadas com mulheres, bebidas e outras diversões. De novo, gostaria que jogadores como os Ronaldos cuidassem melhor da forma física, não porque isso me incomoda, mas porque quero vê-los brilhar em campo. Eu os julgo pelo que fazem sobre o gramado, quer tenham dormido cedo, quer não. Sua vida íntima me é irrelevante.
O que está por trás de atitudes como a dessa faixa é o fato de que as pessoas, no inconsciente, se consideram donas da vida dos ídolos. Por se projetarem neles de uma forma que antes era mais restrita às crianças, não perdoam o menor ''deslize'' (assim considerado); ou eles são super-heróis ou vilões nacionais. Se François Villon escrevesse seus poemas hoje, chamaria mais atenção por ser ladrão e alcoólatra do que pelo talento da Balada dos Enforcados. E os paparazzi o perseguiriam até quando fosse comer um croissant na padaria e os sites publicariam a foto no alto de suas páginas e a matéria estaria entre as mais lidas do dia... Já os versos como ''E nós, os ossos, transformados em cinza e pó'', talvez nem fossem escritos.
DOM MACHADO
Leio que na Flip continuou a imperar a tese de que Capitu é vítima inocente das maquinações pseudocapitalistas de Dom Casmurro, como se tudo que ele relata no livro fosse insinuação para desonrá-la... Ele não é nenhum Otelo, porque incapaz da ''fúria do mouro'', e tampouco é Hamlet, que afinal tenta agir. É um sujeito enganado acima de tudo por sua romântica vaidade, que não tem coragem de realmente encarar a própria fraqueza, que se deixa fascinar por Escobar tanto quanto sua mulher poderia se deixar. Tudo indica que Capitu o traiu; nada comprova. O que está em questão é a psicologia do narrador, pateticamente despreparado para as incertezas e vocacionado para as fantasias - o que não faz dela uma santa, ela que é dona de todas as iniciativas. Em pleno século 21, continuam a dividir as mulheres em anjos ou diabos?
Escrevi um ensaio sobre o tema no livro Quem É Capitu? (Nova Fronteira, org. Alberto Schprejer), que tem textos de Luis Fernando Verissimo, Millôr Fernandes, Luiz Fernando Carvalho, Otto Lara Resende e outros. Em outro livro recém-lançado, Capitu Mandou Flores (Geração Editorial, org. Rinaldo de Fernandes), com 41 autores, colaboro com um conto inspirado no romance. Pouco a pouco os medalhões da academia deixam de ser vozes únicas.
SERTÃO DENTRO DA GENTE
Escrevi sobre o centenário de João Guimarães Rosa recentemente, mas queria acrescentar uma queixa. Em qualquer lugar onde a literatura tem importância, seus cadernos de viagem sairiam dos arquivos para a forma de um belo livro de arte, com fac-símiles de suas anotações e desenhos. Também seus diários e suas cartas precisam ganhar mais versões editoriais, especialmente os de seu período na Alemanha, quando ele e a segunda esposa, Aracy, ajudaram judeus perseguidos pelo nazismo. Só assim poderemos um dia ter a biografia analítica que esse outro gênio brasileiro merece, inexistente até o momento.
As famílias de grandes artistas e intelectuais brasileiros precisam parar de atrapalhar o entendimento e a divulgação de suas obras.
MEA-CULPA
Recebi numerosos emails avisando que o carro de Vittorio Gassmann em Aquele Que Sabe Viver é, sim, um Lancia, chamado Lancia Aurelia. Bons tempos em que os carros e as ruas recebiam nomes femininos... Outros me perguntam por que me referi à canção Por Causa de Você, que está no novo CD de Rosa Passos, como de Tom Jobim e Adilea da Rocha Macedo, nome verdadeiro de Dolores Duran. Ora, porque é assim que consta nos créditos.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Quantos inocentes ainda precisarão morrer para que as pessoas entendam que a política de combate ao tráfico no Rio é burra, truculenta e oportunista? O governador Sergio Nascimento, digo, Sergio Cabral, deveria mudar seu secretariado imediatamente, e não apenas punir - sabe-se lá com qual sentença - os policiais que atiraram no carro onde estava o menino João Bernardo. Depois do ''serviço'' mostrado no Complexo do Alemão e no Morro da Providência, também o presidente Lula deveria ter se manifestado contra o modo como o Exército tem lidado com o problema. Como disse o pai do menino, o Estado não tem carta branca para sair atirando sem perguntar - nem se fossem bandidos. Sozinho e desesperado, esse motorista de táxi mostrou mais lucidez e dignidade que todas as autoridades juntas.
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
A libertação sem conflito de Ingrid Betancourt poderia ser exemplo de como lidar com grupos armados usando mais a inteligência do que a força. Mas isso não deve obscurecer a realidade de que as Farc foram enfraquecidas, mas o narcotráfico continua a ter muito poder na Colômbia. O que estamos vendo é o estertor de uma era de guerrilhas ideológicas na América Latina, e esta é a melhor notícia. O que não dá é para levar a sério o discurso chocho do governo brasileiro, de diplomatas como Marco Aurélio Garcia, que se recusam a condenar o terror das Farc com todas as letras. Se o Brasil está do lado da democracia, o Brasil está contra esse tipo de gente.
POR QUE NÃO ME UFANO (3)
Há uma imprensa chapa-branca que acha que a prisão de Daniel Dantas, Naji Nahas e Celso Pitta é uma vitória do lulismo. Há uma imprensa que era chapa-branca do governo anterior que acha que a prisão comprova os podres do mensalão. Nem uma, nem outra. O prontuário desse trio, há muito revelado em jornais e revistas, só permite uma primeira reação: comemorar que estejam sendo investigados e venham a ser punidos de fato. Mas o distinto público também quer saber se a coisa vai parar por aí. Afinal, o esquema criminoso dos tais ''gênios das finanças'' (nem gênios, nem das finanças) era indissociável do dinheiro público oriundo de estatais, licitações e fundos de pensão. Como eles se movem pelos corredores do poder há muitos anos, o que falta é prender os tucanos e os petistas que lhes abriram tantas portas na administração federal. Repito: os inimigos foram presos, mas e os amigos?
Aforismos sem juízo
Em países desenvolvidos, a lei é equilibrada e a fiscalização é intensa. Em subdesenvolvidos, a fiscalização é frouxa e a lei é radical.
E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br