quarta-feira, abril 23, 2008

Merval Pereira - Um novo mundo



O Globo
23/4/2008

Seja quem for o futuro presidente dos Estados Unidos, terá que governar num mundo em que as relações internacionais serão definidas pela não-polarização, ao contrário da unipolaridade que marcou os últimos anos do século XX e os primeiros deste século, especialmente depois que desapareceu a União Soviética. A tese, defendida em artigo do ultimo número da revista "Foreign Affairs", é do diplomata Richard N. Haass, presidente do Council on Foreign Relations - que edita a revista -, uma entidade não-partidária com sede em Nova York, considerada a mais influente em matéria de relações internacionais nos Estados Unidos.

Para ele, o momento unipolar dos Estados Unidos está superado e o século XXI será marcado por um poder mais difuso que concentrado, e a influência dos Estados-nação declinará em função do aumento da influência de atores não-estatais. O mundo será dominado por dezenas de atores possuindo e exercendo poderes de diversas maneiras, inúmeros centros com poderes específicos importantes.

Haass destaca que os Estados-nação estão sendo desafiados por todos os lados, por organizações regionais e globais, por milícias e por uma variedade enorme de organizações não-governamentais (ONGs) e corporações. Além disso, ele lembra que, fora as seis potências mundiais, há numerosas potências regionais, sendo que na América Latina a única potência indiscutível é o Brasil.

Richard Haass cita ainda alguns estados dentro de países, como a Califórnia nos Estados Unidos, Uttar Pradesh na Índia; e cidades como Nova York, São Paulo e Xangai, que estarão entre os atores importantes deste século.

Ao mesmo tempo, em livro lançado recentemente, o professor canadense Richard Florida, criador da expressão "classes criativas", para definir os grupos que têm influência na sociedade moderna, diz que o saber da atualidade está reunido em 40 megalópoles do planeta, que concentrariam os avanços tecnológicos e o desenvolvimento cultural do mundo moderno. Entre elas, está a megalópole RioPaulo, que reuniria as duas cidades brasileiras mais importantes.

Este artigo da "Foreign Affairs", embora não se dedique especificamente ao Brasil, mas sim ao papel dos Estados Unidos num mundo não-polarizado, é mais um de uma série, depois do editorial do "El País" da semana passada que nos aponta como uma futura potência mundial, e da revista inglesa "The Economist".

A potencialidade do Brasil como um poder global nunca esteve tão em evidência, graças aos bons ventos da economia e ao anúncio precipitado do novo campo de petróleo em águas ultraprofundas, que nos colocaria entre os dez maiores produtores do mundo nos próximos anos.

O fato é que o mundo debate a questão da energia como instrumento político que está dando a países emergentes poder de protagonistas da cena internacional. A idéia de que a América do Sul tem reservas de petróleo e gás para ser parceira internacional importante no equilíbrio do mercado mundial vai ganhando força, num momento em que a energia tem relevância sobretudo política, haja vista a discussão sobre os biocombustíveis e o preço dos alimentos.

Por seu pioneirismo na nova tecnologia, e por suas vantagens comparativas, como amplidão territorial e clima, e por ter das maiores reservas de água do mundo, o Brasil está no centro do debate internacional.

A perspectiva de que o mundo se torne cada vez menos unipolar, dando espaço para novos atores globais, também aumenta a possibilidade de que os países que formam o grupo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) assumam cada vez mais poder nas decisões internacionais, assim como a África do Sul; Egito, Irã, Israel e Arábia Saudita, no Oriente Médio; Paquistão, no Sul da Ásia; Austrália, Indonésia e Coréia do Sul, na Ásia e Oceania, segundo a análise de Richard Haass na "Foreign Affairs".

Ele lista também organizações globais, como o FMI ou a ONU; regionais, como Liga Árabe ou a OEA e as "funcionais", como a OPEP ou a Organização Mundial da Saúde. E cita empresas globais que dominam setores vitais como a energia ou as finanças; empresas globais de mídia, como a CNN ou a Al Jazeera; as milícias, como o Hamas ou o Talibã; partidos políticos, instituições religiosas ou mesmo organizações terroristas como a Al-Qaeda.

Toda essa relação de atores Richard Haass usa para mostrar que existem mais centros de poder, e os Estados-nação não são a maioria deles. Ele defende que o multilateralismo será essencial nesse novo mundo que já existe, e, por isso, tanto o Conselho de Segurança da ONU quanto o G-8, grupo que reúne os países mais industrializados, precisam ser reconstituídos para refletir o mundo de hoje, e não o pós-Segunda Guerra Mundial.

Nesse novo modelo de mundo, será crescentemente difícil conseguir acordos genéricos, e os Estados Unidos, segundo Haass, terão que se limitar a objetivos mais modestos e firmar acordos parciais.

Ele prevê que o comércio terá importância fundamental nessa nova configuração, e pode ser um instrumento importante para a integração entre as nações, dando aos países condições de melhorar suas situações internas de saúde, evitando conflitos e facilitando o desenvolvimento.

O papel dos Estados Unidos será conduzir as negociações na Organização Mundial do Comércio para reduzir subsídios e barreiras ao livre comércio. O mesmo poderia ser feito com relação ao clima e com acordos em aspectos específicos, como devastação de florestas, ou arranjos entre alguns países, como os maiores emissores de carbono, por exemplo, em vez de tentar um acordo internacional que resolva todos os problemas.

Seria o que Richard N. Haass, presidente do Council of Foreign Relations, classifica de "multilateralismo à la carte", um novo mundo sem hegemonias, que o futuro presidente dos Estados Unidos terá que saber partilhar com outros atores. E no qual o Brasil terá papel cada vez mais relevante.