quinta-feira, abril 24, 2008

Merval Pereira - Dilema americano



O Globo
24/4/2008

Se é verdade, como disse Barack Obama depois de perder por uma margem consistente de votos as primárias na Pensilvânia, que as eleições americanas estão marcando uma nova maneira de fazer política -, com o eleitorado dando um recado de que não aceita mais a maneira antiga, que ele insinua ser a praticada pela senadora Hillary Clinton -, a dicotomia entre o eleitorado das grandes cidades e o do restante do país, que dá a liderança a Obama por uma margem pequena de delegados (menos de cinco por cento dos escolhidos até agora), mas grande de votos (cerca de 2,5 milhões), pode se refletir numa derrota para os democratas em novembro.

A vitória da senadora Hillary Clinton por uma margem de dez pontos percentuais, praticamente o dobro do que mostravam as últimas pesquisas de opinião, demonstra que a corrida no partido democrata está longe de terminar. E, mais que isso, deve vir a ser definida pelos superdelegados, o que dará à decisão um cunho de conchavo de bastidores que pode ser nocivo para a campanha do partido se o senador Barack Obama chegar à frente no número de delegados, mas Hillary Clinton for a escolhida.

Por isso, a senadora Hillary Clinton insiste em que as primárias de Flórida e Michigan, que ela venceu, devem ser computadas. Os 366 delegados que seriam escolhidos foram anulados pela direção nacional dos Democratas, por questões internas do partido. Nada menos que 3 milhões de votos desapareceram assim da disputa, o que dá a Hillary um forte argumento de que a diferença a favor de Obama não é real.

Parece certo que, ao final das primárias em junho, nenhum dos dois candidatos conseguirá obter os 2025 delegados necessários para fechar o resultado da convenção em agosto. O que transferirá aos superdelegados, escolhidos pelas direções partidárias, a tarefa de referendar o candidato que obtiver a maioria, mesmo que ela seja mínima, ou escolher aquele que considerarem mais capaz de vencer a eleição de novembro contra o candidato republicano John McCain.

Apesar de todo o movimento de renovação provocado pelo senador Barack Obama, e pela mobilização popular que sua presença na campanha vem provocando, o fato é que a senadora Hillary Clinton tem conseguido se manter na disputa vencendo nos maiores estados, como Nova York, Califórnia, Ohio e, na terça-feira, na Pensilvânia.

A maré favorável a Obama, que o transformou surpreendentemente em favorito a partir do início das primárias, pode estar mudando, como otimisticamente disse ontem a senadora Hillary Clinton.
Mas, mesmo que não mude, não parece ter dimensão que permita uma decisão indiscutível. Antes de a campanha começar oficialmente, Hillary não apenas era a favorita absoluta, que seria apenas homologada pelas primárias, como representava a opção liberal contra a gestão de George W. Bush.

O discurso novo do senador Barack Obama, e sua imediata conexão com o eleitorado jovem que transformou as primárias em um evento cívico como há muito não se via nos Estados Unidos, despertando uma esperança de mudança mais profunda que a simples derrota da atual administração, transformaram a senadora Hillary Clinton em uma candidata retrógrada, que representa o establishment político, e a oligarquia Clinton passou a ser tão perniciosa para a política americana quanto a de Bush.

De fato, na tentativa de recuperar um terreno que não contava perder, Hillary tem ido para a direita na campanha democrata, chegando ao cúmulo na Pensilvânia de aproveitar-se de um comentário de Obama sobre o amargor do cidadão médio americano do meio-oeste, que se apega à religião ou às armas ou à bebida em busca de uma segurança que perdeu com a crise econômica, para exaltar esses hábitos como valores tipicamente nacionais.

A tática deu certo, e ela deve ser aprofundada até o final das primárias, reforçando aspectos da política democrata que a aproxima da dos republicanos, como a necessidade de ter um presidente forte na Casa Branca para enfrentar o terrorismo e um mundo hostil aos Estados Unidos.

Mas impedir que Obama atinja o número mínimo que o formalizaria como o candidato democrata e reduzir ao mínimo a diferença entre eles para permitir que uma decisão da maioria dos cerca de 800 superdelegados a seu favor que não pareça uma armação da cúpula política, parece ser a melhor saída que lhe resta.

Uma estratégia complexa e polêmica, que aprofundará ainda mais as divisões do partido democrata, e que reforça a sensação de que uma vitória de Barack Obama estará mais de acordo com o futuro do novo mundo não-polarizado que já estamos vivendo, como definido em recente artigo da revista "Foreign Affairs" pelo presidente do Council on Foreign Relations, o diplomata Richard N. Haass, abordado aqui na coluna de ontem.

Para ele, o tempo da hegemonia americana terminou, e o mundo não-polarizado não apenas envolverá mais atores influentes, como deixará de ter estruturas e relações diplomáticas previsíveis. Segundo Richard Haass, os Estados Unidos não poderão mais se dar ao luxo de adotar uma política externa que separe os países que estão "contra" ou "a favor".

Alianças políticas perderão importância, e as relações serão mais seletivas e circunstanciais, dentro da realidade de que não haverá aliados incondicionais nem adversários permanentes, mas cooperação em algumas questões e resistências em outras.

Um mundo muito mais próximo da postura política de Barack Obama do que da versão "dura" de Hillary Clinton ou dos republicanos. Resta saber se a maioria do eleitorado está sintonizada com esse novo mundo, ou se vai preferir manter um "falcão", mesmo que brando, na Casa Branca. Nesse caso, crescerão as chances de John McCain.