Editorial |
O Estado de S. Paulo |
29/2/2008 |
A cena foi transmitida pela emissora estatal venezuelana Telesur, a única autorizada a documentar a entrega de quatro reféns das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) a representantes do governo de Caracas e da Cruz Vermelha, em um ponto da Amazônia colombiana apropriadamente chamado El Retorno. A única mulher do grupo de libertados depois de mais de seis anos de captura, a ex-senadora Gloria Polanco, recebe flores de uma guerrilheira, agradece e diz o que vai fazer com elas: “Vou depositar no túmulo de meu marido, os quatro ramos, um de cada um dos meus filhos e o outro meu.” Poucas imagens - e palavras - poderiam ser mais lancinantes do que essa na crônica de horrores protagonizada pela organização narcoterrorista que mantém em cativeiro centenas de pessoas, algumas há um decênio. A história da ex-senadora, afinal, é uma ilustração insuperavelmente fiel da desumanidade desse exército de delinqüentes “revolucionários”. Em julho de 2001, Gloria foi seqüestrada com dois dos seus três filhos, então com 15 e 17 anos, por um bando que invadiu o prédio em que moravam na cidade de Neiva, no sul da Colômbia. Sete meses depois, ela foi separada dos jovens e incluída no infame rol de “reféns políticos”, hoje na casa de 40, que as Farc querem trocar por 500 dos seus que se encontram presos. À época, mesmo ausente, ela foi eleita para o Congresso pelo Partido Conservador - com a maior votação daquele pleito. O seu marido e correligionário, ex-deputado e ex-governador, Jaime Lozada, conseguiu comprar a libertação dos filhos, pagando o resgate em parcelas. Eles recuperaram a liberdade em julho de 2004. Um ano e meio depois, num ataque a tiros e explosivos, Lozada foi assassinado - aparentemente, por ter atrasado uma prestação. A promessa da viúva de levar a seu túmulo as flores do mal - literalmente - exprime tudo o que pode separar a decência humana da criminalidade hedionda dos terroristas que, embora na defensiva hoje em dia, continuam na sua faina assassina que atormenta o povo colombiano. Para libertar outros reféns, as Farc ainda se dão ao escárnio de exigir, além da soltura de 500 guerrilheiros, que o presidente Álvaro Uribe decrete a desmilitarização, por 45 dias, das áreas onde se situam os municípios de Pradera e Florida e onde se daria o escambo. Naturalmente, tratando-se de uma região próxima de Cali, a terceira maior cidade do país, seria uma temeridade o governo de Bogotá aceitar a imposição dos bandidos. Blefando ou não, as Farc anunciaram o fim abrupto das “liberações unilaterais” iniciadas em janeiro com a entrega de uma ex-senadora e de uma auxiliar de sua mais conhecida vítima, Ingrid Betancourt. Seqüestrada em fevereiro de 2002, quando candidata à presidência da Colômbia, a então senadora, agora a única mulher refém dos facínoras, tem sido especialmente maltratada por eles. Um dos quatro libertados anteontem, o também ex-senador Luis Eladio Pérez - que contou em detalhes revoltantes as agruras a que eram todos submetidos -, descreveu Ingrid, com quem esteve no começo do mês, como “fisicamente esgotada” e correndo risco de vida. Pérez relatou que ela é mantida “em condições infra-humanas”. Em Caracas, para onde os ex-cativos foram finalmente conduzidos, no papel de coadjuvantes involuntários do show do bom amigo das Farc, Hugo Chávez, Gloria Polanco reiterou que o estado de Ingrid é desesperador. Nem assim, o caudilho se dispôs a demandar a sua soltura. Numa apoteose de cinismo, dirigiu-se diretamente ao chefão da narcoguerrilha, Manuel Marulanda, a quem pediu que transferisse a prisioneira para “um comando” mais próximo dele, “enquanto continuamos abrindo o caminho para a sua liberação definitiva” - como se os padecimentos a ela infligidos não tivessem sido determinados pelo mesmo Marulanda, qualquer que fosse o pedaço de inferno que fosse obrigada a habitar. Chávez ainda se gabou de estar fazendo “tudo o que pudermos para liberar até o último dos seqüestrados” - como se as Farc estivessem propensas, apenas para enaltecer perante o mundo a figura do caudilho aliado, a renunciar ao seu poder de barganha. O que a quadrilha do narcotráfico pretende é ser reconhecida como força beligerante legítima. |