sexta-feira, fevereiro 01, 2008

A AmBev dos telefones?


Coluna - Armando Castelar Pinheiro
Valor Econômico
1/2/2008

Quando se anunciou a fusão entre Antártica e Brahma, essa foi apresentada como a oportunidade de criar um "campeão nacional", uma multinacional auriverde que juntaria a competência empresarial da Brahma com a qualidade do guaraná Antártica para disputar o mercado mundial de refrigerantes ombro a ombro com a Coca-Cola. Cinco anos depois, a empresa foi vendida para o grupo belga Inbev e não se fala mais de exportar guaraná. O resto é história.

A verdade, porém, é que isso pouco importa. Como observou Deng Xiao Ping, ao colocar a China comunista na senda do capitalismo, "pouco importa a cor do gato, o importante é que ele cace os ratos". Mesmo "belganizada", a AmBev continuou a produzir, empregar, investir e pagar impostos no Brasil. A questão relevante na fusão, adequadamente enfatizada no debate da época, era se a AmBev poderia usar seu poder de mercado para explorar o consumidor e limitar a competição. Juntas, Brahma e Antártica dominavam 72% do mercado nacional de cervejas. Em âmbito regional, que é o relevante nesse setor, dado o elevado custo de transporte, havia casos em que a parcela conjunta de mercado superava 90%. A importação não é uma fonte relevante de competição, dado o papel crucial da propaganda e do controle dos canais de distribuição, que só se justificam a partir de uma escala mínima, não atingida pelo produto importado. Depois de muito debate, prevaleceu o entendimento de que o custo de entrada de novos fabricantes era relativamente baixo, criando uma concorrência potencial suficiente para disciplinar a AmBev, e a fusão foi aprovada.

Uma das lições desse episódio foi o sucesso de público do discurso do "campeão nacional", grande e capaz de competir na arena global. Ele foi retomado nas frustradas fusões entre a Varig e a TAM e da Sadia com a Perdigão, que formariam empresas com altas parcelas de mercado, sujeitando-se, portanto, ao veto do Cade, e está outra vez de volta na defesa da proposta da compra da Brasil Telecom (BrT) pela Oi. Mesmo do ponto de vista do marketing, porém, esta é uma "venda" difícil: as duas empresas já são de capital nacional, não estão ameaçadas por companhias estrangeiras, e não exportam. O único "ganho" seria transformar a Oi, maior empresa do setor, numa empresa ainda maior. Mas o que o cidadão brasileiro tem a ganhar com isso?

Juntar a Oi com a BrT é unir dois monopolistas regionais para criar um quase monopolista nacional, em um setor em que a geração de competição é difícil

Possivelmente nada; mas corre o risco de ter uma perda significativa. Uma década atrás, quando a Telebrás foi privatizada, um dos maiores desafios foi criar um mecanismo que gerasse competição na telefonia fixa, algo difícil, devido ao controle da empresa que daí surgisse da rede de cabos utilizada na prestação desse serviço. Como essa rede era única em cada localidade, e na grande maioria dos casos não se justificava instalar uma nova rede, ficava difícil gerar o tipo de competição potencial com que se pretendeu disciplinar a AmBev. Ainda assim, foi feito um esforço razoável, com a criação das empresas espelho (Vésper, GVT etc). O principal passo nesse sentido, porém, foi a divisão da Telebrás em três empresas regionais de telefonia fixa. Como essas já nasciam com elevada escala e capacidade de inversão, poderiam mais facilmente ameaçar umas às outras. À época, projetava-se que em um horizonte de cinco anos a parcela de mercado de cada uma no seu mercado regional caísse para até 75%. Essa expectativa não se materializou: ainda hoje, Oi, Telefônica e BrT respondem por mais de 90% dos acessos fixos em suas respectivas regiões. A rivalidade entre elas na telefonia fixa é muito baixa, como mostra a ausência de propaganda desse serviço. Essas empresas também se destacam na oferta de internet banda larga em suas regiões, com isso detendo elevadas parcelas do mercado nacional: a Telefônica, 28%, a BrT, 22%; e a Oi, 20%.

Juntar a Oi com a BrT é unir dois monopolistas regionais para criar um quase monopolista nacional, em um setor em que a experiência demonstra ser muito difícil gerar competição, efetiva ou potencial. Uma empresa desse tamanho teria mais facilidade de capturar o regulador, de dificultar a entrada de concorrentes no mercado, e de bloquear a adoção de medidas pró-competitivas, como a portabilidade de números de telefone e a chamada desagregação de rede, que mesmo no quadro atual ainda não se conseguiu implementar. Isso reduziria o seu estímulo a ser eficiente, a gerar e introduzir inovações, e a transferir ganhos de produtividade para os consumidores, sob a forma de tarifas mais baixas e serviços de melhor qualidade. Seria um passo atrás nas reformas promovidas no setor, levando-o mais para perto da situação anterior à privatização da Telebrás. Por que a sociedade brasileira iria querer isso?

Outro elemento ainda difícil de entender na proposta ventilada pela imprensa é o papel do BNDES. O mandato básico do Banco é transferir subsídios concedidos pelo Tesouro Nacional, com recursos do contribuinte, sob a forma de empréstimos com taxa de juros inferiores às de mercado, para fomentar investimentos na ampliação da capacidade produtiva, que de outra forma, na sua avaliação, não ocorreriam. Emprestar recursos para a Oi investir na expansão de suas instalações é consistente com esse mandato. Mas como compatibilizá-lo com a concessão de um mega empréstimo para que os controladores da Oi adquiram as participações das suas contrapartes na BrT? Esta não seria a primeira vez, nem possivelmente a última, que o Banco subsidiaria a compra de uma empresa por outra, mas especialmente em um momento em que o BNDES enfrenta uma demanda por financiamentos para a realização de novos investimentos superior à sua disponibilidade de recursos, será essa a melhor forma de utilizar esses fundos, do ponto de vista do interesse público?

O processo de fusão entre a Oi e a BrT está apenas começando, e pode não prosperar, como ocorreu em outros casos. Se o fizer, ainda deverá passar pelo crivo da Anatel, do Cade e dos poderes constituídos em geral, o que permitirá ponderar melhor seus prós e contras. O fundamental é focar o debate nas questões que realmente importam para a sociedade brasileira, e não ficar discutindo a cor do gato.

Armando Castelar Pinheiro, economista do Ipea e professor do IE-UFRJ, escreve mensalmente às sextas- feiras.