domingo, janeiro 27, 2008

Mailson da Nóbrega

Tributação, crédito e capitalismo


O moderno sistema capitalista nasceu do longo processo de mudanças institucionais que eliminaram o absolutismo e a tirania. A origem é a Carta Magna inglesa (1215), que retirou do rei, entre outros, o poder de tributar unilateralmente. Os nobres passaram a pagar os impostos que eles mesmos autorizassem, em assembléia.

Mais de quatro séculos depois, a Revolução Gloriosa (1688) transferiu o poder supremo para o Parlamento. O rei perdeu também a atribuição de gastar a seu talante e de demitir juízes. O governo ficou mais previsível. Um Judiciário independente podia fazer cumprir direitos de propriedade e contratos. Floresceram o empreendedorismo e a inovação.

Com a criação do Banco da Inglaterra (1694), essencialmente para gerir a dívida pública (o que o faria o primeiro banco central), os títulos do governo adquiriram credibilidade. A ausência de risco de calote forneceu confiança aos investidores e facilitou o endividamento do Tesouro, a juros cada vez mais baixos. O Banco da Inglaterra se tornou também fonte de crédito ao setor privado. A revolução creditícia viabilizou a Revolução Industrial.

Nesse contexto, foi possível financiar a construção naval (o que tornaria a Inglaterra a senhora dos mares) e as guerras contra a França, que na época era mais rica e populosa. Sucessivas vitórias culminaram no êxito final na batalha de Waterloo (1815), da qual a Inglaterra emergiu definitivamente como potência mundial. No auge, o império britânico cobria mais de um quarto da superfície e da população da Terra.

Além dessas transformações, o capitalismo se beneficiou das mudanças derivadas da reforma protestante, da educação e da tecnologia. Os níveis de bem-estar geral se expandiram de forma inédita. Em três séculos, os pobres da Europa passaram de 90% para 10% da população. E tudo começou, vale repetir, com a limitação do poder de tributar.

Faço esse resumo a propósito da discussão sobre o IOF, para a qual tenho procurado contribuir neste espaço, afirmando que a recente elevação de suas alíquotas é inconstitucional, pois o aumento de tributos por decreto pode ser feito apenas naqueles de natureza regulatória.

Externei também a opinião de que o IOF era, na origem, um imposto regulatório arrecadado pelo Banco Central, cabendo ao Conselho Monetário decidir sobre a aplicação de seus recursos. Tal primitivismo institucional desapareceu na esteira das reformas que extinguiram a "conta de movimento" (1986) e o Orçamento Monetário (1987). Em 1988, a arrecadação passou para a Secretaria da Receita Federal (SRF) e a aplicação dos recursos se tornou prerrogativa do Congresso.

Em artigo na Gazeta Mercantil (17/1/2008), Everardo Maciel, o mais longevo e um dos mais ilustres e competentes secretários da SRF, sustentou que há tempos o IOF perdeu a característica de extrafiscalidade, o que teria decorrido da transferência da sua administração para a SRF e, assim, de sua integração ao Orçamento. Não concordo com o argumento, pois outros tributos inquestionavelmente regulatórios, como os relativos ao comércio exterior, também são administrados pela Receita e integram o Orçamento.

É preciso, porém, concordar com sua afirmação de que não poderia "ser tido como regulatório um tributo responsável, em 2006, por cerca de R$ 6,7 bilhões - superior à arrecadação do IPI sobre fumo e bebidas." Em reforço de sua tese, pode-se dizer que hoje perdeu sentido a regulação via IOF, dado que a taxa de juros passou a funcionar no Brasil como instrumento básico de preservação da estabilidade macroeconômica. Essa concordância não significa negar a inconstitucionalidade da medida, opinião que mantenho.

De fato, se, como diz o dr. Everardo - com a autoridade de quem conhece o assunto como poucos -, o IOF se tornou um imposto arrecadatório, suas alíquotas não podem ser alteradas por decreto. Sendo assim, há que observar princípios que remontam a 1215 e subordinar o aumento das alíquotas à legitimidade de sua aprovação pelo Congresso. Obtida a autorização legislativa, a arrecadação somente pode iniciar no exercício seguinte.

Especialistas têm dito que o STF decidirá pela constitucionalidade do aumento do IOF por decreto. Pode ser. Seria, contudo, um ato contrário à experiência histórica e a avanços institucionais incontestáveis.