domingo, janeiro 27, 2008

Fernando Henrique Cardoso

O desafio das crises: barbas de molho


Durante o período em que governei, o Brasil passou por uma série de crises. Foram tantas que melhor seria dizer em que anos não houve crises: apenas entre 1996 e outubro de 1997, e durante todo o ano de 2000. Não por acaso, foram os anos em que houve maior crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).

Este, partindo do embalo de haver crescido 5,3% quando eu era ministro da Fazenda do presidente Itamar Franco, manteve a economia aquecida em 1995, aumentando o PIB à taxa de 4,1%. Teve um pouco mais de impulso em 1996, o que resultou em aumento do PIB de 3,3% em 1997, e o produto só voltou a crescer mais significativamente em 2000, atingindo 4,3%.

A crise do México de dezembro de 1994 pegara em cheio o início do governo, quando desejávamos ajustar a taxa de câmbio. Em 2001, além do estouro da "bolha" das empresas "pontocom", deu-se o ataque terrorista às Torres Gêmeas. Em 2002, o "efeito Lula" levou o mercado financeiro à beira de um ataque de nervos. Em cada uma dessas crises, a reação inicial do governo sempre foi a mesma: a crise não vai nos pegar porque os fundamentos da economia estão melhores. Por mais que protestássemos tranqüilidade e inocência, o tal do "contágio" nos transmitia os males "exógenos".

Estávamos aprendendo a duras penas que, em um mundo de economia globalizada, a suposição de que estamos sólidos não é bem assim: ora é o câmbio que não está ajustado, ora é o equilíbrio fiscal que não é tão garantido assim, ora são os preços das exportações que caem quando menos se espera.

O mais difícil, quando vem o impacto brutal da crise, é manter a calma e ver mais longe. O nervosismo não ajuda, o que é preciso é agir: aumentar os juros, com coragem, quando necessário; baixá-los, sem temor, quando possível, não perdendo nunca os vislumbres de céu de brigadeiro; não hesitar em aumentar impostos ou cortar gastos quando se percebe que há "temblor" na conjuntura antes que chegue o terremoto, e assim por diante. E, sobretudo, o presidente deve dar a mão firme a seus operadores econômicos, ajudando-os a confiar neles próprios. E, naturalmente, em conjunto, transmitir ao País a confiança de que saberemos atravessar a tempestade.

Fácil de dizer, difícil de fazer. A crise atual é diferente, em aspectos fundamentais, das que eu comentei acima. Naquelas, o punhal assassino vinha diretamente pelo câmbio e matava com um golpe certeiro no coração. Nesta, há uma crise de crédito nos Estados Unidos decorrente da expansão inescrupulosa de empréstimos e da inadimplência dos devedores, e não da falta de liquidez do sistema financeiro, ademais regado fartamente por recursos pelos bancos centrais. As conseqüências da crise atual sobre nós não virão de golpe, não nos asfixiarão. Virão pouco a pouco, na medida em que haja arrefecimento da economia americana e isso reduza as exportações chinesas para aquele país. Mas virão, e não adianta dizer "isso é com você, George Bush". É injusto, como foi no passado com o tal contágio, pagar por erros que não fizemos, mas são as regras do jogo. Quando no norte tudo vai bem, também nós, sem termos feito tanto esforço assim, nos beneficiamos. É a globalização, com sua cara má e suas oportunidades.

Por fim, barbas de molho. Por mais sólidos que estejamos, atenção aos problemas domésticos. Assim como no meu tempo, alguns de nós proclamávamos que os fundamentos estavam sólidos, agora é preciso, para dizer isso e dormir tranqüilo, pelo menos olhar para os gastos sem controle e dar maior seguimento aos esforços para evitar que, havendo escassez de chuvas (eu sei que Deus é lulista, mas mesmo assim...), a energia nos falte.