Dois graduados funcionários do Departamento do Tesouro estiveram no Brasil recentemente. Em conversa com eles, ouvi que os Estados Unidos não entrarão em recessão e que os fundamentos da economia americana estão cada vez melhores: o déficit fiscal caiu para 1,2% do PIB, o déficit externo caiu de 6% para 5% do PIB. Para o dólar, a explicação que deram foi que a moeda sofre um overshooting.
As explicações e os dados apresentados, os argumentos usados, inclusive as palavras, eram parecidos com os que os países emergentes, durante suas crises, tinham que utilizar para restaurar a confiança em suas economias. Até a explicação para a forte desvalorização da moeda americana foi a mesma dada pelo Brasil em 1999 e em 2002: o overshooting, ou seja, um exagero de desvalorização provocado pela radicalização da crise de confiança do mercado, mas que voltará a um ponto de equilíbrio.
Na quinta-feira, foi divulgado o dado de crescimento americano do terceiro trimestre, e o número veio surpreendentemente alto. Não é uma tendência. O país terá uma desaceleração pelo efeito da queda dos preços dos imóveis e do refinanciamento a juros maiores de grande parte dos mutuários.
Existem, de fato, melhoras nos fundamentos da economia americana. A queda do déficit fiscal, que já chegou a 4,9% do PIB, é o número mais importante. O déficit em transações correntes caiu pouco perto do tamanho da desvalorização do dólar. Apesar dos pequenos avanços, a economia dos EUA está com um problema grave no mercado de crédito provocado pelos desdobramentos da crise das hipotecas. Os rombos dos bancos — cada dia um — são apenas uma parte do fenômeno. O Banco Central deles, o Fed, já fez quatro fortes tentativas de acabar com a crise no mercado de crédito, mas a crise continua.
Segundo o economista Paul Krugman, a ajuda do Fed não está funcionando porque não se trata apenas de afastar um problema momentâneo de crise de confiança, mas, sim, de lidar com uma crise real nas instituições financeiras.
O Banco Central europeu teve que ofertar, esta semana, em apenas um dia, a inacreditável montanha de US$ 500 bilhões, como assistência de liquidez aos bancos. E o fundo soberano da China socorreu o Morgan Stanley, injetando nele US$ 5 bilhões para cobrir o enorme e primeiro prejuízo trimestral da sua história.
Isso também se trata de uma curiosa situação invertida.
Os países emergentes é que estão salvando instituições que, nos anos 80, estiveram no comitê dos credores das dívidas externas dos países em desenvolvimento, e que, nos anos 90, estiveram entre os que exigiam acordos desses países com o FMI, nas crises cambiais. Recentemente o Citibank, importante credor do Brasil na época da crise da dívida dos anos 80, foi resgatado pelo aporte de capital de um país árabe.
Esta semana, o Bear Stearns anunciou o primeiro prejuízo trimestral em 84 anos.
As posições invertidas entre quem socorre e o socorrido, o excesso de ajuda dos bancos centrais de países ricos aos seus mercados, os prejuízos gigantescos em bancos tradicionais e o temor de que o pior da crise das hipotecas ainda não tenha aparecido aumentam a insegurança em relação ao ano que começa em breve.
Há ainda outros temores rondando. Um deles é a inflação na China, que chegou a 6,5% nos últimos doze meses, com um número assustador de alta de alimentos: 18% em um ano. A inflação de alimentos no mundo não é trivial. Ela se espalhou este ano por fatores climáticos e quebras de safras que podem ser parcialmente superados nos próximos meses, com novas colheitas, mas há fatores estruturais. Há um aumento mundial da demanda por comida e redução de terra disponível para a produção de alimentos, além dos efeitos da mudança climática que, nos próximos anos, podem repetir casos como os de quebra de safra por eventos extremos. No caso da China, a situação é mais dramática, mas a inflação de alimentos não contaminou outros preços da economia. O petróleo, contudo, pode contaminar. O governo chinês controla os preços dos combustíveis, que lá não subiam há muito tempo, apesar de o petróleo ter chegado perto dos US$ 100. Agora, eles acabaram de autorizar um aumento de 10%, e isso pode elevar a inflação acima dos 6,5%. Como a China vai lidar com as pressões inflacionárias é outra das várias dúvidas que se tem sobre a evolução da economia internacional nos próximos meses.
No governo Bush, o que se diz é que o pior da crise americana já passou, que a mudança, ainda que pequena, no déficit em transações correntes, é uma inversão de tendência. Isso, junto com um maior equilíbrio fiscal, melhorou os indicadores e tornou a economia mais forte para enfrentar a crise das hipotecas. Os funcionários do Tesouro que ouvi afirmam categoricamente que não há qualquer análise séria prevendo recessão nos Estados Unidos.
Neste fim de ano, no entanto, as previsões para a economia americana estão piorando continuamente.
Os relatórios dos bancos ou prevêem um ano de 2008 de forte desaceleração do crescimento ou um período de recessão. Ou pior, um período de estagflação (inflação mais estagnação), como disse, esta semana mesmo, Alan Greenspan.