O Estado de S. Paulo |
27/12/2007 |
O território da nação Camba encontra-se cartografado no site do Movimento Nação Camba de Liberação (http://www.nacioncamba.net/). Ele abrange os quatro departamentos do oriente boliviano, drenados por rios amazônicos e platinos, e está circundado quase inteiramente por “regiões afins”, que são o Centro-Oeste brasileiro, o Acre, o Paraguai guarani e os departamentos de Cochabamba e Chuquisaca. Apenas um curto segmento da fronteira camba linda com uma Bolívia remanescente, circunscrita ao Altiplano e nem sequer nomeada. A descrição habitual das tensões internas bolivianas como um conflito entre a “maioria indígena” do Altiplano e a “elite branca” de Santa Cruz oculta, semanticamente, a dinâmica do nacionalismo camba, que se articula em torno das elites do oriente, mas assume os contornos de um movimento popular. Os governadores autonomistas da Meia-Lua não temem perder os referendos revogatórios invocados como ameaça pelo presidente Evo Morales. A declaração do governador de Tarija, Mario Cossio, de que “na unidade nacional não se toca”, pois “somos autonomistas, não independentistas”, expressa o programa oficial camba, mas não o extenso horizonte de um movimento de natureza separatista. Nos muros das cidades da Meia-Lua está escrito: “Morte aos collas” (os indígenas do Altiplano). O movimento camba inscreve-se na tradição do nacionalismo romântico, no interior do qual pulsam as noções de etnia, raça e ancestralidade. Do tronco dessa tradição brotou também o galho extremista do fascismo. O nacionalismo é, antes de tudo, uma narrativa destinada a esculpir a nação no tempo e no espaço. A antropóloga Kathleen Lowrey, em artigo publicado na Latin American and Caribbean Ethnic Studies, traçou a evolução da narrativa camba. Durante a Guerra do Chaco (1932-35), entre Bolívia e Paraguai, a elite de Santa Cruz pendeu para o lado paraguaio, distinguindo-se do Altiplano “indígena” com base numa proclamada ancestralidade espanhola. Na época, camba era um termo pejorativo usado para designar os índios, majoritariamente guaranis, das terras baixas do oriente boliviano. Camba ganhou conteúdos inesperados quando a elite de Santa Cruz foi colocada diante da necessidade de elaborar um contraponto popular à revolução nacionalista de 1952, que estendeu os direitos de cidadania aos mineiros e camponeses do Altiplano. Gestou-se então a narrativa da mestiçagem entre brancos e guaranis das terras baixas orientais, que seria a matriz étnica da nação Camba. A pesquisa histórica entrou em ação, fabricando uma versão pela qual se assevera que, no início do século 16, os guaranis se levantaram em armas contra os incas, impedindo a extensão do império para as terras baixas orientais. Os cambas emergiam como fruto do encontro de duas estirpes guerreiras, espanhóis e guaranis, unidas pela geografia e pela resistência ao centro de poder andino. O capítulo derradeiro da saga nacional camba foi escrito por Hernando Sanabria Fernández, historiador de Santa Cruz, que numa obra de 1972 revisita o levante milenarista guarani do final do século 19. Na sua versão, os choques entre guaranis e brancos das terras baixas mesclaram sangue e honra, mas o massacre final, conduzido pelo governo “andino” de La Paz em 1892, representou um ato de pura barbárie. Erguia-se, desse modo, uma ponte historiográfica de solidariedade dos brancos aos guaranis. A narrativa camba ganhou densidade social nas últimas décadas, marcadas pela crise da mineração do Altiplano e pela transferência do pólo econômico boliviano para o oriente, onde estão os campos de gás e petróleo. Sob o impacto do fluxo migratório do Altiplano para as terras baixas, o nacionalismo camba difundiu-se no oriente, entre trabalhadores urbanos, agricultores e guaranis, reforçando seu vetor anticolla. A “Bolívia plurinacional” é uma invenção recente. O governo Sánchez de Lozada (1993-97) combinou um programa econômico ultraliberal com a introdução de políticas de “diversidade”, estimulando a afirmação das identidades étnicas e das tradições indígenas. O seu multiculturalismo apontava o rumo das autonomias regionais, algo que seduziu tanto lideranças indígenas do Altiplano quanto as elites do oriente. Evo Morales chegou ao poder carregado pela onda de protestos sociais que derrubou Sánchez de Lozada e paralisou seus efêmeros sucessores. No plano econômico, o novo governo promoveu um giro nacionalista, mas, no plano político, aderiu ao paradigma do multiculturalismo. O texto da Constituição votada pelos partidários de Evo Morales reproduz, quase literalmente, os dogmas autonomistas do programa oficial camba. A “devolução” de poderes às “nações indígenas originárias” do Altiplano se amolda à perfeição ao projeto da nação Camba. O discurso político da ancestralidade e do sangue, que funciona como um solvente derramado sobre a identidade nacional boliviana, proporciona uma oportunidade histórica para os que defendem a atomização do país. Mas a conciliação dos nacionalismos do Altiplano e do oriente no quadro do Estado boliviano não é possível, pois todos almejam capturar o mesmo pote de ouro no fim do arco-íris. Esse pote de ouro são as rendas do gás e do petróleo. Sob Evo Morales, a nacionalização dos hidrocarbonetos representa o ponto de partida de uma operação de transferência de riquezas para as suas bases sociais no Altiplano. Os dirigentes dos departamentos da Meia-Lua, ao se insurgirem contra a nova Constituição, não pretendem impugnar o credo das autonomias, mas desenvolvê-lo até as últimas conseqüências: o controle regional sobre os recursos naturais. Quando existe uma nação, o centro de poder - democrático ou autoritário - resolve o problema da repartição das riquezas comuns. Quando se sacrifica a nação no altar das etnias, são as armas que solucionam o conflito distributivo. Eis o preço do fundamentalismo multiculturalista. |