Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 25, 2007

Tucanos perdidos na floresta

Gaudêncio Torquato



Há 18 anos, os tucanos iniciavam o documento Os Desafios do Brasil e o PSDB, proposta de sua social-democracia para administrar as crises social, do sistema político, de crescimento e de modernização tecnológica, fazendo um alerta sobre o estado "insatisfatório do país". O argumento central era de que o País não completara as mudanças iniciadas e até as "deturpara a tal ponto que, ao invés de produzirem mais igualdade e justiça, elas agravaram desníveis de classe e as diferenças entre as regiões". Ao apresentar novo programa para a Nação, no congresso realizado na semana passada em Brasília, o PSDB praticamente se ateve a uma plataforma de temas recorrentes, que freqüentam há tempos o dicionário da crise, tais como juros elevados, gastos correntes soltos, estatismo, empreguismo, crescimento medíocre, mensalões irrigados com dinheiro de estatais, programas paternalistas, banalização do mal, violência, corrupção, impunidade, apadrinhamento político, alternativas ao eixo Norte-Sul. A proposta se ampara, ainda, num slogan para conferir diferencial ao discurso: mais governo e mais mercado.

O diagnóstico é irreparável. A intenção do tucanato de afiar o bico com vista ao pleito presidencial de 2010, com passagem pela floresta municipal de 2008, é compreensível, principalmente ante o estado de catatonia em que vive o sistema partidário. Ocorre que o PSDB perdeu o gás que tinha por ocasião do seu nascimento em 1988, ano do rebuliço constitucional, quando o País iniciava um ciclo de oxigenação política. Sua atual expressão, rica de platitudes, se iguala à de outras siglas, sendo apenas gaita de sopro para animação de uma militância sem entusiasmo e cada vez mais rala. Os tucanos não souberam correr no vácuo aberto pela pasteurização partidária. Detinham uma das identidades mais homogêneas entre os entes partidários, quando foi fundado o partido; os melhores quadros, a partir de Franco Montoro, Mário Covas e Fernando Henrique; e, ainda, a proposta mais consentânea com a modernidade institucional, eis que não se originou no ventre sindical nem em lobbies corporativos ou assembleísmo classista. Nascia de uma costela peemedebista, pelo engajamento de um grupo a um ideário renovador e em repulsa aos métodos da velha política. Mas caiu na vala comum onde os partidos brasileiros, desde os tempos do Império e da República Velha, costumam aprofundar raízes e contribuir para a manutenção de velhas estruturas.

O PSDB sempre foi um partido de quadros, expressão atribuída por Maurice Duverger a legendas que não fazem apelo direto às massas, não desenvolvem um modelo de adesão formal e são dirigidos por políticos conhecidos. Essa tipologia foi, até 1914, essencial para a consolidação da democracia liberal na Europa. Mas não resistiu à emergência dos partidos de massa, com os quais passou a dividir o poder. No caso brasileiro, o partido da social-democracia nunca se empenhou em chegar às margens sociais, limitando-se a defender um ideário próximo aos núcleos concentrados no meio da pirâmide social. Seu erro, desde o início, foi o de apostar que, sem participantes massivos, num país de cultura política subdesenvolvida como o nosso, conseguiria viver na crista do poder. O desaparecimento de tucanos referenciais, o desgaste do segundo mandato de FHC, a sucessão de crises políticas e a miscigenação partidária abriram enorme fosso entre a esfera social e o território político. O vazio foi estrategicamente ocupado por Luiz Inácio, ícone da dinâmica social. Que luta para comprimir o espaço da oposição. Neste segundo mandato, o presidente lubrifica motores, abraça as massas e coopta partidos, usando, na mão esquerda, a bengala populista e, na direita, o aríete estatal para derrubar bastiões da resistência.

E o que diz o PSDB? Faz a crítica cosmética no geral, mas negocia com o Executivo no particular. Essa é a impressão que transmite. Falta-lhe a virtude da coerência. E vontade de fazer oposição sem transigir. Os tucanos talvez nunca tenham desenvolvido o faro oposicionista. Vagam na escuridão. Qual é a proposta mais objetiva de seu programa? A defesa do voto distrital, ferramenta que, vale lembrar, freqüenta o cardápio reformista há bastante tempo? Nos últimos tempos, o partido praticamente se limitou a repetir que o governo Lula copiou sua política macroeconômica e seu programa distributivista. Ora, essa queixa não leva a nada. Apenas sugere que, em nosso país, a disputa interpartidária é um jogo pela alternância do poder, sem grandes diferenças programáticas. Tem sido assim desde o Império, quando os clãs feudais se engalfinhavam. Uma ou outra sigla poderia ser mais identificada com o interior rural ou o centro urbano, como o PSD e a UDN. Quase todos os partidos políticos, porém, sempre viveram à sombra do Estado, o que os torna dependentes da máquina estatal. Veja-se o atual PT. Partidarizou o Estado. Não há mais rivalidade ideológica, apenas luta para conquista do poder a qualquer preço.

A crise do tucanato abarca, ainda, um excessivo centralismo, sob o comando de uma cúpula reduzida. Há cinco a seis figuras de proa que ditam as regras. As instâncias estaduais e municipais são corpos inermes. Na escala dos agravos, a grande floresta tucana se concentra em São Paulo e Minas Gerais, indicando a existência de aves de bico longo e grosso que amedrontam tucaninhos de plagas marginais. O fato é que a cultura política do País adquiriu nuances. As coisas da política são consideradas abjetas. Partidos e políticos são considerados "farinha do mesmo saco". O pragmatismo alimenta o sistema decisório da população. Palavra de ordem dada por sigla partidária não passa de "mais do mesmo". Sob esse esgarçado tecido político-institucional, o novo programa do PSDB se assemelha a um presente velho com embalagem fina. É burocrático, mais um diagnóstico e menos proposição. Falta-lhe representatividade social e territorial. O partido insiste em ser uma casta. E que tem um castelo como morada.

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