quinta-feira, novembro 22, 2007

Lula, Chávez e a democracia



artigo - José Álvaro Moisés
O Estado de S. Paulo
22/11/2007

Como interpretar a mais recente defesa do modelo chavista de democracia pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva? O presidente havia mantido, até agora, uma posição relativamente ambígua, ora condenando a hipótese de terceiro mandato, ora deixando uma porta aberta para defender a proposta. Com as declarações da semana passada, em meio à controvérsia sobre a mudança constitucional para permitir mandatos sucessivos, Lula deixou a ambigüidade para trás, talvez porque avalie que o governo não se arrisca mais a perder a votação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), mesmo revelando a sua posição a respeito da re-reeleição.

A defesa de Hugo Chávez em nome da democracia indica ou que o presidente Lula não sabe bem do que está falando, isto é, está confundindo plebiscitarismo com democracia representativa - uma coisa muito mais complexa do que apenas plebiscitos, referendos e mobilização popular, baseada na divisão de Poderes - ou, mais grave, está escondendo a sua preferência atrás da briga do presidente venezuelano com o rei da Espanha, este, sim, um chefe de Estado democrata.

A declaração de Lula revelou melhor as suas afinidades com o esquerdismo autoritário de Chávez e com o seu antiamericanismo. Mas é claro que também contaram outras duas coisas: por um lado, simples interesses comerciais com um parceiro da economia do petróleo; por outro, o receio da diplomacia brasileira de comprar briga com um ator que, em tese, pode ser mais perigoso isolado do que integrado à comunidade sul-americana - embora as conseqüências disso ainda não tenham sido suficientemente discutidas.

Mas a Venezuela não pode mais ser classificada como uma democracia, como o senador José Sarney viu bem, seja porque o governo não respeita a oposição, pressionando-a para além de limites aceitáveis, seja porque não assegura a liberdade de expressão nem tolera os sinais de crítica ao governo de parte de estudantes e de outros setores de classe média. A própria irritação de Chávez, revelada em comentários grosseiros, com os cuidados do Congresso brasileiro para avaliar a conveniência da entrada de seu país no Mercosul mostra isso.

Além do mais, nas freqüentes menções de Lula ao parlamentarismo para defender, em tese, a possibilidade de eleições sucessivas no presidencialismo, há um misto de ignorância e de má-fé. O presidente sugere não compreender que os dois sistemas de governo são substancialmente diferentes.

A comparação simplesmente deixa de lado dois aspectos importantes: por um lado, que o parlamentarismo é um sistema congressual, baseado no papel dos partidos, cujo mecanismo de controle contra o abuso do poder é o voto de desconfiança, isto é, o voto com o qual o Parlamento pode, a qualquer momento, desacreditar o governo, convocar eleições e interromper os abusos; já o presidencialismo, de sua parte, não conta com tal mecanismo, os mandatos têm prazo fixo e o governo, em vez de responder perante o Parlamento, como no parlamentarismo, responde diretamente ao eleitorado, mas somente quando houver novas eleições.

Não faz sentido, portanto, comparar coisas diferentes, principalmente no que tange aos mecanismos de controle do abuso de poder, que é o que explica que, desde sua origem nos Estados Unidos, o presidencialismo opere com base em mandatos de prazo fixo e, desde a primeira metade do século 20, com base em uma única reeleição.

Lula não é ingênuo, nem desconhece tudo isso e, menos ainda, que o PT está defendendo a convocação de uma nova Constituinte supostamente para fazer a reforma política. Quem garante que ela não será usada para pavimentar a defesa de uma concepção plebiscitária de democracia, pela qual ele poderia governar por meio de plebiscitos e referendos, como defendeu o seu amigo deputado federal Devanir Ribeiro (PT-SP), sem dar importância ao Congresso Nacional e aos partidos? Aliás, diante do processo de progressiva desmoralização de que tem sido protagonista o Congresso, não é difícil que a tese venha a ter apoio popular. Minhas pesquisas sobre a “desconfiança dos cidadãos das instituições democráticas” mostraram justamente isso: 76% dos eleitores desconfiam do Congresso.

O governo tem responsabilidades nisso. Além das atitudes e do comportamento anti-republicano de muitos parlamentares, a compra de apoio político ou o incentivo à migração de deputados oposicionistas para a base governista, como revelaram os processos do “mensalão” e iniciativas recentes ligadas à aprovação da CPMF, mostram que tanto o PT como o governo, desde seu primeiro mandato, adotaram um caminho que compromete os partidos e as instituições de representação. A defesa da corrupção, a pretexto de que os outros sempre fizeram o mesmo, vai na mesma direção, ou seja, contrapõe o modelo de democracia representativa a mecanismos plebiscitários, em vez de procurar integrá-los, como em alguns países.

A situação justifica as preocupações com o futuro da democracia. Por isso, a palavra agora está com as lideranças democráticas, com os partidos de oposição e com as organizações da sociedade civil. Como reagirão a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), os sindicatos e as organizações de defesa dos direitos humanos? E o PSDB, o Democratas e o PPS? Mesmo com benevolência, os passos do governo nessa matéria não são ingênuos ou irrelevantes. Têm de ser cuidadosamente avaliados e exigem respostas claras e precisas.