sexta-feira, outubro 26, 2007

Sérgio Cabral pisou no tomate?



Artigo - Bárbara Gancia
Folha de S. Paulo
26/10/2007

Faz sentido dizer que a promiscuidade oriunda da pobreza oferece um terreno fértil para a criminalidade?

JÁ ABORDEI O ASSUNTO outras vezes neste espaço, mas a discussão em torno das declarações do governador carioca, Sérgio Cabral, que ligou o aborto ao crime, me compelem a voltar à vaca-fria.
Resumindo, Cabral disse que o aborto de filhos indesejados, gerados nas regiões mais pobres do Rio, pode ajudar a conter a violência.
Na Folha de ontem, a respeitada socióloga Julita Lemgruber o contestou, afirmando que filhos de pobres não são necessariamente marginais. É óbvio que ela tem razão. Mas também está na hora de acordarmos para a realidade.
O governador pode ter sido um tanto truculento no frasear, mas rebatê-lo, chamando o estudo em que ele se baseou para dar sua opinião de "reacionário" e "preconceituoso" é empobrecer o debate. Reacionário e preconceituoso para quem, cara pálida?
Veja: no ano 2000, dois professores tão respeitados quanto a senhora Lemgruber, John J. Donohue, da Escola de Direito de Stanford, e Steven D. Levitt, do Departamento de Economia da Universidade de Chicago, produziram "O Impacto do Aborto Legalizado sobre o Crime", um estudo mostrando que, nos EUA, a legalização do aborto contribuiu para reduzir o crime em até 50%. A tese é a de que filhos não desejados e/ou de mães solteiras são mais negligenciados e sofrem abusos maiores. Conseqüentemente, têm mais chances de se envolver com o crime.
Só em São Paulo, são 3,4 milhões de jovens entre 15 e 24 anos, dos quais 950 mil não estudam ou trabalham. No Brasil todo, esse número sobe para 7 milhões de jovens sem nenhuma atividade produtiva. Some a isso uma geração de políticos que emergiu da ditadura com asco da autoridade policial e um poder público que não consegue nem sequer cumprir metas de saneamento básico e você terá, sim, uma conexão entre filhos indesejados e criminalidade.
Ninguém em sã consciência é favorável ao aborto. Pessoalmente e por convicção religiosa, não faria jamais, mas não permitir que a grávida disponha de seu corpo como bem entende é negligenciar a mulher que depende do sistema público de saúde. A que tem recursos faz aborto na hora que desejar. Só a mais pobre é obrigada a ter filhos que não terá como criar. Mais: dizer que embriões de poucas semanas são equivalentes a seres humanos com complexos sistemas neurais e cerebrais é outro argumento um tanto ultrapassado.
Cabral pode ter errado no tom e nas estatísticas que apresentou quando disse que a Rocinha tem padrões africanos de fecundidade (na verdade, não são tão diferentes daqueles da zona sul carioca), mas está coberto de razão quando defende que as mulheres mais pobres tenham acesso aos mesmos meios utilizados pelos ricos.
Parece fazer sentido dizer que a promiscuidade oriunda da pobreza oferece um terreno fecundo para a criminalidade. Um indivíduo sem estrutura familiar, sem educação, que não recebeu afeto e não dispõe de condições mínimas de higiene não terá mais chances de se tornar violento? Em todo caso, para tirar a história a limpo, sugiro que se faça uma pesquisa entre a população carcerária para conhecer a porcentagem dos que não tiveram pai e mãe. Que eu me lembre, o Marcola é órfão e o Fernandinho Beira-Mar é filho de mãe solteira.