Apesar dos insultos, governador do Rio contribui para colocar em discussão o acesso aos métodos contraceptivos
SERIA TUDO mais simples se atitudes de preconceito e obscurantismo, corriqueiras em nossa sociedade, estivessem restritas a alguns poucos porta-vozes inflamados e plenamente convictos do teor de suas manifestações.
O hábito da incorreção política e da disposição discriminatória se mostra, contudo, tão arraigado no discurso cotidiano que contamina até raciocínios enunciados a partir de uma perspectiva igualitária e modernizante.
Referindo-se à Rocinha como "fábrica de produzir marginal", pois são relativamente altos seus índices de fecundidade, o governador fluminense Sérgio Cabral Filho (PMDB) incorreu num lamentável insulto -uma correlação automática entre favela e crime a qual hoje, em entrevista à Folha, procura relativizar. Tal correlação, é preciso ressaltar, se manifesta no pensamento de considerável fatia da população.
Vivemos, afinal, num país em que um assassino e torturador fardado, supostamente incorruptível -o famoso capitão Nascimento, personagem do filme "Tropa de Elite"- ascende com rapidez assustadora ao panteão dos heróis populares.
Das planejadas ações de "higienismo urbano", visando a varrer os mendigos das ruas, aos bárbaros ataques de jovens que incendeiam indigentes durante a noite, parecem surgir na sociedade brasileira sinais de uma perigosa fantasia: a da eliminação sumária de todos os contingentes que, mergulhados na miséria ou no crime, atestam o fracasso histórico das políticas de segurança pública e de inclusão social empreendidas até agora no país.
É precisamente sobre esse fracasso, porém, que o governador Sérgio Cabral visava lançar alguma luz. Apesar da gafe, foi corajoso o seu pronunciamento sobre a necessidade de oferecer aos mais pobres informação sobre planejamento familiar e acesso a métodos anticoncepcionais e de assegurar a brasileiras de todas as classes, dentro de certos limites, o direito legal ao aborto.
"A mulher tem o direito de interromper uma gravidez não-desejada. É assim em Portugal, na Espanha, no Japão e nos EUA. Por que não pode ser assim no Brasil?", perguntou Cabral, quebrando o tabu sobre um tema que tantos políticos preferem tratar com hipocrisia.
Seria arriscado atribuir certeza científica definitiva à tese, por ele invocada, de que o direito ao aborto é fator decisivo na redução da criminalidade. O estudo de Steven Levitt e John Donohue, que argumentava nesse sentido, baseou-se nos dados disponíveis em diversas cidades americanas e estará sujeito a contestações se for o caso de transplantá-lo à realidade brasileira.
Não se trata, em todo caso, de especular sobre a validade de tal teoria. Uma questão de princípios está em jogo. Importa dar igualdade de condições a todas as mulheres na hora de decidir se querem filhos ou não, e em que condições haverão de criá-los.
Salta aos olhos o efeito da desigualdade social no acesso aos métodos contraceptivos. Segundo o Censo de 2000, o índice de fecundidade em favelas cariocas era de 2,6 filhos por mulher, 50% mais alto do que no resto da cidade, onde era de 1,7. Nada que se compare aos números de Gabão (5,4) e Zâmbia (6,1), invocados por Cabral.
O destempero numérico do governador deve ser dissociado, entretanto, da essência de seu argumento. Se a legalização do aborto, dado o caráter essencialmente polêmico do tema, deve ser decidida por plebiscito, o acesso ao planejamento familiar é um direito básico que cumpre assegurar nas comunidades carentes. Colocando com clareza essa discussão, o pronunciamento de Sérgio Cabral se reveste de uma importância que, sem dúvida, as formulações infelizes de que veio acompanhado não são suficientes para diminuir.