Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, junho 07, 2007

O censor utópico Demétrio Magnoli ESTADO

> As Meninas Superpoderosas não receberão o selo de Programa
> Especialmente Recomendado para Crianças e Adolescentes. É que
> Tarcízio Ildefonso, diretor-adjunto do Departamento de Justiça e
> Classificação Indicativa (Dejus), não aprova a ambientação, em
> shopping center, da confraternização das heróicas meninas: "Esse
> gesto é segregacionista, já que nem todos podem fazer compra em
> shopping, além de ser um estímulo ao consumismo." Ildefonso
> gostaria que elas celebrassem suas vitórias "no Palácio da
> Justiça". Eu, que não nutro a mesma admiração fetichista pelos
> templos do Estado, faria as meninas confraternizarem em praça
> pública. Minhas preferências são irrelevantes. As dele valem ouro:
> todos os dias, compulsoriamente, ocuparão as telas das redes
> nacionais de televisão.
>
> Se o Supremo permitir, Ildefonso e seus colegas se tornarão
> "meninos superpoderosos". As suas preferências serão convertidas em
> selos bilionários ou em supressões irremediáveis porque, por meio
> da classificação horária obrigatória, eles têm os meios de
> destroçar financeiramente produtos culturais moldados para os
> anunciantes do horário nobre. Os censores da nova era não cortam
> cenas ou proíbem filmes: eles põem a mídia eletrônica de joelhos
> diante do poder de turno.
>
> Na ditadura militar, os chefes da Divisão de Censura de Diversões
> Públicas (DCDP) falavam em nome da moral e dos costumes. Os novos
> censores renegam seus ancestrais e falam em nome da democracia.
> Eles acusam os críticos de prestarem serviço às empresas de mídia,
> como se o princípio do lucro não pudesse conviver harmoniosamente
> com o da censura. Eles citam Estados democráticos que fazem
> classificação indicativa, omitindo ritualmente a circunstância
> decisiva: lá fora, não há exame prévio de programas e quem
> classifica são órgãos de auto-regulamentação; aqui, o governo passa
> a dispor do poder discricionário de controle prévio e
> classificação. O nome disso é censura.
>
> O Dejus não é o DCDP. Aos olhos dos censores orgulhosos de outrora,
> um beijo era um beijo, sexo era sexo e um crânio partido era o que
> era. Os censores dissimulados de agora são seres mais complexos.
> Reverentemente, eles obedecem às regras de um manual parido por
> "especialistas" que ensina a inserir cada coisa no seu "contexto".
> Há beijos virtuosos e beijos ominosos. Existe sexo do bem e pura
> sacanagem. O tiro e o crânio partido são interpretados à luz dos
> imperativos de justiça social. O valor de cada gesto, palavra e
> cena depende de seus significados políticos e culturais.
>
> O Manual de Classificação Indicativa é um anacronismo intelectual
> digno de regimes como os de Stalin, Salazar ou Mussolini. Enrolando-
> se no manto dos direitos humanos e prometendo um "diálogo
> pedagógico com a sociedade", o documento atualiza a meta fascista e
> comunista de fabricação do Homem Novo. Numa passagem memorável, ele
> define "comportamentos repreensíveis" como sendo "contextos/cenas/
> diálogos que valorizam ou estimulam irresponsabilidade, egoísmo,
> desonestidade, desrespeito para com os demais, manipulação,
> preconceito, ameaça, fuga de conflitos - sem que, ao mesmo tempo,
> haja uma clara mensagem de repúdio a essas práticas". A bíblia do
> censor dissimulado propicia, ao sabor do arbítrio do Dejus, a mais
> vasta latitude de interpretação e interferência sobre produtos
> culturais. De Shakespeare ao folhetim, tudo pode ser expurgado para
> a solidão da madrugada. O antigo DCDP pretendia cercear, amordaçar,
> calar, proibir. O novo Dejus almeja falar, moldar, doutrinar, ensinar.
>
> O Dejus é Lula em toda a sua glória. Há anos, o presidente reitera,
> em incontáveis pronunciamentos, o paralelo entre a nação e a
> família. Sob essa lógica, ele se apresenta como pai, que trata o
> povo, "especialmente os mais pobres", como seus próprios filhos,
> exercita a paciência, mas não renuncia à firmeza, traça limites e
> sofre ao dizer "não". A metáfora da nação-família, uma pedra
> angular de autoritarismos de diversas matrizes, é o alicerce
> ideológico que sustenta o edifício da nova censura.
>
> Lula não inventou a classificação indicativa, um fruto da
> articulação entre ONGs e intelectuais petistas que pregam o
> "controle social da mídia". Mas o ambiente político no qual
> floresce o dirigismo cultural está contaminado pela idéia de que a
> missão do Estado é educar a sociedade. Não se pode confiar na auto-
> regulamentação da mídia, na crítica pública da programação de tevê
> ou no discernimento das famílias: a consciência nacional deve ser
> depositada aos cuidados do censor utópico incrustado no Ministério
> da Justiça.
>
> A visão paternalista acalentada pelo Planalto oferece pretextos
> para variadas aventuras dirigistas. Meses atrás, os Ministérios da
> Saúde e da Educação produziram uma cartilha de educação sexual
> destinada a alunos de escolas públicas de 13 a 19 anos que ensina a
> colocar preservativo e os convida a relatar suas "ficadas",
> expressão na qual se inclui "beijar, namorar e transar". Posta
> diante da objeção de que a cartilha circunda a mediação dos
> professores e ignora a vontade das famílias interessadas em evitar
> a iniciação sexual precoce dos adolescentes, Mariângela Simões,
> diretora do Programa DST/Aids e responsável pelo material, retrucou
> que "o foco é o jovem, não a censura que possa vir de um pai". O
> texto da cartilha - com trechos como "sexo não é só penetração.
> Seduza, beije, cheire, experimente!" - talvez não passasse pelo
> crivo do Dejus, mas as duas iniciativas compartilham a fé na
> virtude do Estado e o desprezo pelo livre-arbítrio dos cidadãos.
>
> O ridículo está à solta. Na era da internet de massas, o Ministério
> da Justiça alega a urgência de proteger as crianças dos perigos da
> tevê nos horários em que os pais estão ausentes, enquanto admira,
> indiferente, o espetáculo da humilhação cotidiana dos jovens das
> favelas pela ação do crime organizado e da polícia corrompida. Há
> método no absurdo: os doutrinários que ignoram o direito à
> segurança são os mesmos que usurpam o direito à liberdade.
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