sábado, maio 19, 2007

Caos e guerra civil na Faixa de Gaza

Por que eles se matam

A disputa pelo poder, que mistura interesses de partidos
e clãs, leva a Faixa de Gaza à beira de uma guerra civil


Diogo Schelp

Khalil Hamra
Funeral de militante do Hamas morto em confronto com o Fatah: facções fora de controle

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Ao vocabulário do conflito entre israelenses e palestinos, que já popularizou a palavra intifada (levante), incorporou-se agora uma nova expressão em árabe: hamulla, usada para designar a tribo ou o clã. Depois que Israel retirou suas tropas e colonos da Faixa de Gaza, há dois anos, um governo ruim, de ocupação, foi substituído por governo algum. No caos, as hamullas são a única instituição realmente forte no território apinhado por uma das maiores densidades populacionais do planeta. Quando um cidadão faz algo errado, é mais comum os chefes dos clãs se reunirem para resolver o problema segundo suas próprias regras do que recorrerem ao sistema judiciário mantido pela Autoridade Palestina (AP). Além de terem suas próprias milícias, as hamullas colocam alguns de seus integrantes dentro dos grupos armados controlados pelo governo e pelos partidos palestinos. Nesse ambiente caótico, em que as diferenças políticas entre os partidos Fatah, secular, e Hamas, islâmico, se confundem com os interesses individuais dos clãs, não causa estranheza a visão de palestinos encapuzados trocando tiros nas ruas de Gaza.

Esse ensaio de guerra civil já causara mais de meia centena de mortos na semana passada. E nem sequer foi interrompido pelos bombardeios aéreos de Israel, que começaram na quinta-feira em represália aos foguetes caseiros que o Hamas dispara contra cidades israelenses. A explosão de violência em Gaza, a pior desde que o presidente palestino, Mahmoud Abbas, do Fatah, e o primeiro-ministro Ismail Haniyeh, do Hamas, formaram um governo de união, em março, parece sepultar, por agora, os principais objetivos do acordo: interromper a carnificina fratricida como um primeiro passo para retomar as negociações com Israel e melhorar as relações com a Europa e os Estados Unidos.

Mohammed Salen/Reuters
EXÉRCITO IRREGULAR
Guerrilheiro do Hamas, identificável pela faixa verde na cabeça, patrulha a Cidade de Gaza

Aos olhos do mundo, Hamas e Fatah diferem basicamente na maneira como lidam com o conflito com Israel. O Fatah, ao menos oficialmente, quer criar um estado palestino na Faixa de Gaza e na Cisjordânia e aceita ter Israel como país vizinho. O Hamas quer destruir Israel e implantar um estado islâmico na Palestina. Matanças entre palestinos, como as que ocorrem em Gaza, pouco têm a ver com essa divergência ideológica. Trata-se basicamente de uma disputa de poder, em que está em jogo o controle político, militar e econômico da Faixa de Gaza. Na origem do conflito está a vitória do Hamas nas eleições parlamentares de janeiro do ano passado, rompendo o monopólio do Fatah sobre a AP. "Os chefes dos dois grupos passaram a disputar o controle dos recursos do quase-estado palestino, o que significa poder distribuir empregos aos seus partidários, definir a agenda dos ministérios e designar as verbas para os programas sociais", diz o historiador americano Robert Blecher, especialista em Oriente Médio da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos.

Ibraheem Abu Mustafa/Reuters
TODO MUNDO ARMADO
Militantes do Fatah durante combate contra o Hamas em Rafah, na Faixa de Gaza

O domínio sobre as forças de segurança é um dos pontos sensíveis da disputa. No acordo que deu origem ao governo de unidade palestino, o Fatah ficou com o Ministério do Interior, que controla a polícia – para desgosto dos militantes do Hamas. A matança atual entre palestinos começou quando um alto funcionário do Ministério do Interior, Rashid Shbak, à revelia do titular da pasta, colocou as forças do Fatah nas ruas de Gaza. Em resposta, os homens do Hamas abriram fogo contra eles e invadiram a casa de Shbak, assassinando seis de seus guarda-costas. Um dos problemas palestinos é que país algum está disposto a intervir. Ao contrário do que ocorreu na guerra da antiga Iugoslávia, não se prevê o envio de forças de paz da Otan ou dos Estados Unidos. Tanto Abbas quanto Haniyeh pediram, em vão, que suas facções suspendessem a matança interna e os ataques a Israel. Isso se deve ao fato de que o Fatah e o Hamas, da mesma forma que a sociedade palestina em geral, sofrem profundas divisões internas, e cada facção faz o que quer. A cisão no Hamas tem a agravante de que os líderes de seu braço armado estão exilados em Damasco, na Síria. Distantes dos problemas cotidianos dos palestinos, eles tendem a ser mais radicais e a gostar de ver o circo pegar fogo.