terça-feira, maio 01, 2007

AUGUSTO NUNES A revogação do direito ao sonho


Negra, pobre e favelada, nascida e criada no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, Edna Ezequiel soube desde sempre que, no Brasil dos miseráveis, todos sobrevivem expostos ao risco da morte violenta. Prolongada por metralhadoras ou fuzis a serviço de bandidos e policiais, a mão da tragédia ronda todo o tempo todas as portas. No dia 5 de março, chegou a vez de Edna ouvir as batidas pressagas.

Soube que Alana, a filha de 12 anos, voltava para casa quando foi surpreendida por tiroteio de praxe e fulminada por uma bala perdida. Na guerra do Rio, são consideradas perdidas balas que matam inocentes. Disso Edna já sabia. Saberia no dia seguinte que, no Brasil dos flagelados, existe vida depois da morte. E só depois da morte, porque antes do drama Edna e Alana não existiram efetivamente.

Eram não-pessoas, mais duas entre milhões. Mesmo vizinhos ignoravam o passado, não se interessavam pelo presente, nem pelo futuro daquela gente humilde. Para o país que usa os talheres certos pelo menos três vezes por dia, mãe e filha nasceram em 6 de março, paridas pelo noticiário da imprensa. As páginas policiais informaram que Edna tinha 31 anos e, além de Alana, quatro filhos de três pais diferentes. Todos sempre freqüentaram creches e escolas públicas.

Com que espécie de destino sonhava a garota assassinada?, quis saber da mãe um jornalista. A resposta, terrivelmente sincera, acabou por prolongar a existência de Edna na imprensa - um simulacro de vida governado por diminutos prazos de validade: "Quem mora no morro não tem sonhos, moço", ensinou. Menos de um mês depois de experimentar a dor que não passa, descobriu que o pesadelo no morro é capaz de matar até crenças seculares.

Um raio pode cair duas vezes no mesmo lugar, aprendeu Edna neste 14 de abril. No dia seguinte, foi reapresentada ao país a mesma figura franzina, o rosto amarfanhado por rugas precoces, envelhecido por vincos que denunciam o sofrimento constante. Chorava agora a morte de um irmão, o office-boy Hélio José da Silva.

Ele voltava da maternidade onde visitara a mulher grávida quando o destino resolveu reprisar a tragédia recente. Também no Morro dos Macacos, também surpreendido por uma bala perdida, Hélio confirmou a frase perturbadora da irmã: é proibido sonhar em terras conflagradas. A segunda existência de Edna no mundo da informação foi mais curta.

Nesta segunda-feira, o repórter Marcello Victor, do Jornal do Brasil, foi à procura dessa mutilada de guerra para saber como é a vida real entre um tiroteio e outro. Uma sala, um quarto e um banheiro compõem a casa acanhadíssima que Edna divide com os filhos Carlos Alexandre (15 anos), Michael (10), Maria Alice (6) e uma menina nascida há dois anos. Sustenta a família com o que consegue como diarista, os R$ 200 da mesada que recebe do pai da filha caçula e os R$ 95 do programa Bolsa Família. Depois da morte de Alana e de Hélio, renunciou aos R$ 50 que ganhava para cuidar de um sobrinho.

"Não tenho mais cabeça pra cuidar de criança", resumiu para o repórter do JB. Alguém lhe sugeriu reivindicar na Justiça indenizações a que tem direito. Por enquanto, explicou, falta-lhe cabeça também para tratar dessas questões. "E nenhum advogado me procurou", disse. Promete cuidar do assunto assim que receber o laudo da morte da filha, que aguarda há quase dois meses. "Na delegacia, disseram que a papelada ficaria pronta no começo de abril, mas, até agora, nada", contou. "Ainda estou esperando".

Sabe que os pobres esperam mais que os ricos. E teme esperar pelo que não virá, diz uma voz que não tem o tom de quem se queixa. Tem o tom de quem não sonha.

01/ 05 / 2007