quarta-feira, março 28, 2007

Peripaque: confissões



Artigo - Paulo Rabello de Castro
Folha de S. Paulo
28/3/2007

Uma foto, um recálculo e um relato encerram o tríduo confessional do Brasil morno, que não queremos

UMA FOTO, UM recálculo e um relato -todos na última semana- encerram o tríduo confessional do Brasil morno, que não queremos. A foto é a que registra Lula recebendo Collor na mesa redonda do Palácio do Planalto. A República já viveu dias menos foscos e as lentes dos fotógrafos oficiais já registraram encontros de maior significado. Os personagens são os que, em 1989, pareciam polarizar caminhos muito distintos. Não eram -nunca foram- apesar da enorme distância das suas histórias de vida. Unindo ambos, há a acumulação de um enorme passivo -o espírito perdido do crescimento do país.
Na mesma semana da foto, o recálculo. Um novo PIB para Lula, que comeu alguns décimos do pífio crescimento da era FHC para decorar, com cores menos pálidas, os resultados do primeiro mandato lulista. Tal recálculo, que em nada altera a realidade da hipotérmica realização do crescimento nacional nem muda o avanço da mediocridade sobre os fragmentos da vontade de mudar e crescer, traz, nas suas contas de decimais, uma certeza agora revisitada: não adianta chacoalhar esse PIB, pois ele não crescerá além do que foi nele investido, e isso é muito, muito pouco para absorver a demanda talássica por mais emprego da nova geração que nos vem bater às portas.
Finalmente, a confissão, por meio do relato sincero e trágico de um outro presidente, José Sarney, em sua última coluna da Folha (23/03/07, pág. A2), a propósito do Brasil perdido. Com cândida bravura, ele estabelece o vínculo da estagnação com a Constituição de 88. Sua insuspeita observação política é que, à exceção de escassas contribuições relevantes (ex. Afonso Arinos), a Constituição é uma colcha de retalhos dos interesses queremistas de cada grupo e corporação lá representados. Após citar vários próceres da brasilidade, egressos das construções constitucionais anteriores à de 1988, Sarney nada captura, no seu radar de cérebros a serviço do Brasil, algo que se pareça aos valores de outrora. Diz ele, sem peia nem piedade: "A de 1988, não revelou ninguém. Não há um destaque a fazer-se... Um nome sequer apareceu. Todos dedicaram-se ao clientelismo do Estado...".
Com essa espantosa confissão de um observador privilegiado da cena, de então e de agora, é para concluir que, embora o esforço seja "ainda crescer", a Constituição de 1988 só nos puxa para baixo.
Não só. Existe algo de viciado e vicioso no mote da política econômica desde a virada dos anos 70 para 80, ou seja, bem antes da nova Constituição. A exibição estatística desse verdadeiro "desmanche da modernidade" pode ser acompanhado num gráfico secular -o crescimento desde o distante ano 1900. A partir de Collor, ficamos ancorados em taxas de PIB tão baixas que não resgatarão a pobreza nacional nem nos próximos 50 anos. Desfez-se o sonho, muito antes da Constituinte de 87-88. As raízes do fracasso econômico atual vão até os anos 70, quando nos perdemos num cipoal de mitos e mentiras articulados pelos grupos de interesse, para perpetuar privilégios seus, associados à máquina do Estado, do nível local até o federal.
A crescente dissociação entre legitimidade política e reciprocidade em prestação de serviços aos cidadãos ampliou-se a tal ponto que as próprias autoridades passaram a fazer a crítica dessa brutal ineficiência. Lula, na sua oratória lúdica, critica a falta de "entrega" das políticas essenciais de governo, como se fora ele oposição a si mesmo. A crítica da ilegitimidade do poder e de malícia dos poderosos começou com Collor, ao prometer caçar os "marajás". Caçaram o povo...
A ausência de reciprocidade ao povo por meio de políticas econômicas e sociais adequadas, em confronto com a absurda carga tributária, desemboca na percepção da ilegitimidade total do poder instituído e de suas fontes principais de sustentação: a Constituição, a Justiça e o Congresso Nacional.