domingo, fevereiro 25, 2007

Mailson da Nóbrega Haja atraso


Apesar da aprovação de uma moderna Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000, o Brasil ainda padece de grave atraso institucional em suas finanças públicas. O Orçamento, a lei anual mais importante votada pelo Congresso, é interpretada como se estivéssemos na Idade Média, quando os reis possuíam o poder de arbítrio sobre a despesa pública.

Aqui se diz que o Orçamento é autorizativo. O governo cumpre apenas o que quiser, o que faz dessa peça uma lei 'que não pega'. Para piorar, aceita-se que o Orçamento seja mutilado por um instrumento de hierarquia inferior, isto é, um decreto presidencial que contingencia verbas e muda prioridades.

Este ano, o Senado piorou a situação. Aprovou um inacreditável projeto, que veda o contigenciamento na segurança publica. Pelo projeto, o Executivo não pode descumprir a lei orçamentária naquela parte, mas pode desrespeitá-la no restante.

Poucos parlamentares conseguirão discorrer sobre os antecedentes históricos do Orçamento, embora muitos falem sobre democracia, particularmente a de nossos dias, conhecida como democracia de massas. Esta começou no século 19, na esteira das transformações derivadas do poder de barganha dos trabalhadores e do voto universal, inclusive o das mulheres.

Na verdade, as bases da democracia ocidental foram lançadas na Europa a partir do século 17, quando certas mudanças institucionais deram ao Parlamento o poder de decidir com exclusividade sobre os gastos e o endividamento públicos. O fim do arbítrio dos reis que daí decorreu também fez nascer o sistema capitalista.

Além de três séculos atrasados, construímos uma interpretação sem base na História ou na Constituição. O artigo 165, § 8º, diz que 'a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa'. A palavra 'lei' está lá e o termo usado para a despesa equivale a determinação. Nada a ver com 'autorizativo'.

O Orçamento fixa as prioridades para a aplicação dos recursos extraídos dos contribuintes. Somente representantes com mandato popular podem ter o poder de decidir sobre a matéria. Infelizmente, eles próprios aprovaram as vinculações de receitas a despesas, processo pelo qual os congressistas de ontem decidiram pelas gerações futuras.

A interpretação de que o Orçamento é autorizativo tem suas conveniências. Ela preserva a austeridade da proposta do Executivo e nos livra dos efeitos da irresponsabilidade do Congresso, que infla as receitas para acolher o máximo de emendas paroquiais. O decreto de contigenciamento poda os excessos, tem seu lado benéfico, mas constitui uma desobediência consentida à lei.

De fato, se de uma hora para outra o Orçamento ficasse sério e se tornasse mandatório, como as instituições contemporâneas e a prática democrática recomendam, o déficit público aumentaria, provocando uma reação em cadeia: a relação dívida/PIB adquiriria trajetória explosiva e uma crise de confiança provocaria desvalorização da moeda e pressões inflacionárias, levando o Banco Central a aumentar juros. O bem-estar social diminuiria.

O processo orçamentário contém incentivos para a perpetuação do atraso. O governo federal não tem interesse em medidas moralizadoras, pois a versão do caráter autorizativo é conveniente e costuma ser referendada pela mídia e pelos formadores de opinião. O Congresso não se move, pois sabe que o estrago das emendas será evitado e pode explicar às suas bases que o contingenciamento resulta da 'insensibilidade' do Tesouro.

Não é difícil tornar o Orçamento uma peça mandatória. Como a principal fonte de distorção tem sido a 'reestimativa' da receita pelos seus relatores no Congresso, bastaria estabelecer uma regra pela qual a estimativa da arrecadação seria feita em conjunto por técnicos dos poderes Legislativo e Executivo e não pelos relatores. As dotações orçamentárias seriam inteiramente liberadas segundo um cronograma compatível com o comportamento da receita. Ganhar-se- em transparência e previsibilidade.

No fundo, o Executivo prefere o atraso institucional. Pode, assim, utilizar a liberação de emendas parlamentares como instrumento de barganha para obter votos em decisões importantes de seu interesse no Congresso. É dupla desmoralização: do processo orçamentário e da atividade legislativa.