quarta-feira, fevereiro 28, 2007

As mágoas uruguaias persistem



editorial
O Estado de S. Paulo
28/2/2007

O clima de cordialidade que marcou o encontro dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Tabaré Vázquez não é um indicador de que as graves contrariedades do governo uruguaio em suas relações com o Mercosul tenham sido superadas. As breves seis horas - aí incluídos um demorado almoço e as amenidades de praxe - que o presidente Lula passou no Uruguai não seriam suficientes para que os dois chefes de governo aprofundassem qualquer discussão sobre os pontos que constituem o contencioso uruguaio. Antes da reunião, o governo e os setores produtivos daquele país sentiam-se tolhidos pelas regras da união aduaneira, que não permite negociar acordos comerciais sem participação de todos os integrantes do bloco, e prejudicados pelas "assimetrias", ou seja, pelos crescentes déficits comerciais que o Uruguai se sente condenado a sofrer por conta da estrutura do Mercosul. E, quando Lula voltou para Brasília, esse sentimento de profunda frustração não havia desaparecido.

Na nota conjunta sobre a reunião, os dois presidentes reafirmaram "o compromisso com o aprofundamento da integração produtiva dentro do Mercosul e com a aplicação de mecanismos eficientes para superar as assimetrias". Ou seja, os dois países comprometeram-se com o que já se haviam comprometido desde a criação do Mercosul. Esse "compromisso" não tem efeito prático e muito menos significa uma mudança na política uruguaia, que é a de procurar acordos comerciais mais lucrativos, fora do Mercosul.

Mas a visita do presidente Lula está sendo apresentada, pelo governo, como um sucesso. Ele teria convencido o presidente Tabaré Vázquez a não levar adiante o projeto de negociar um tratado de livre-comércio com os Estados Unidos, a 10 dias da chegada do presidente George W. Bush a Montevidéu. Como se sabe, se tal tratado chegasse a ser feito e ratificado, o Uruguai não poderia continuar a fazer parte do Mercosul, do qual é sócio fundador, por absoluta incompatibilidade com as regras da união aduaneira.

O ministro da Economia do Uruguai, Danilo Astori, ferrenho defensor do acordo com os Estados Unidos, declarou ao final do encontro presidencial que seu país continuará perseguindo a possibilidade de um acordo bilateral com Washington, mas dentro das normas do Mercosul. Ou seja, enunciou um paradoxo.

Significaria isso que o Uruguai mudou de posição? Se algo não falta ao governo de Tabaré Vázquez é o sentido do interesse nacional e o senso de realidade. Por mais enfáticas que sejam as declarações do presidente Lula de solidariedade com o Uruguai, o presidente Vázquez sabe que o seu país não figura entre as prioridades da política externa brasileira. E o presidente Lula nunca escondeu que Montevidéu não está entre suas maiores preocupações. Até hoje os uruguaios, partidários do governo ou da oposição, não engoliram a olímpica recusa do governo brasileiro de mediar a questão das papeleras - o que foi visto como um apoio implícito à posição argentina. Também pegou muito mal a ausência de Lula na Cúpula Ibero-Americana de Montevidéu, em novembro, e pior ainda o cancelamento da visita oficial, em dezembro.

Além disso, os acordos e convênios assinados no encontro de anteontem jamais compensariam as oportunidades que o Uruguai teria com um relacionamento comercial privilegiado com os Estados Unidos. O ex-presidente Jorge Batlle, por exemplo, recordou que durante sua administração o governo brasileiro anunciou que o BNDES faria aportes importantes à economia uruguaia - como agora voltou a fazer - "e nunca se conseguiu absolutamente nada". O ex-presidente Luis Alberto Lacalle, por sua vez, declarou que o presidente brasileiro chegou a seu país "autoproclamando uma liderança que ninguém lhe concedeu". E acrescentou: "Que Lula venha falar que é preciso melhorar o comércio e os negócios com o Uruguai parece uma piada." E o ministro da Agropecuária, José Mujica, que integrou a delegação que se entendeu com a comitiva brasileira, fez um implacável resumo da ópera: "Lula não fez anúncios nem mudou sua posição, e o grande destinatário de seu discurso foi a sociedade brasileira."

Os uruguaios não se deixaram iludir pela retórica lulista. Se não vão insistir no tratado de livre-comércio com Washington é por uma simples e realista razão: já estão peremptos os poderes que o Congresso atribuiu ao presidente Bush para negociar acordos comerciais. Só por isso.