Sob a justificativa de que o Brasil precisa se adequar a acordos internacionais que assinou, entre os quais as Convenções Interamericana e a das Nações Unidas contra a Corrupção, o governo quer mudar as regras da “quarentena”. Inspirada em regras moralizadoras adotadas com sucesso nos EUA e na Europa, a medida foi posta em prática no País há alguns anos com o objetivo de impedir que funcionários públicos de primeiro escalão, como ministros e secretários de Estado, façam uso de informações privilegiadas ao deixarem seus cargos.
Pelo Código de Conduta da Alta Administração Federal, que entrou em vigor em 2000 e foi concebido para evitar conflitos de interesses, os ocupantes de cargos de primeiro escalão ficam proibidos de, durante os quatro meses seguintes à sua exoneração, atuar na iniciativa privada ou como consultores em áreas relacionadas com as funções que exerceram na administração pública. Em compensação, continuam a receber o salário do governo. Atualmente, há apenas 92 cargos cujos ocupantes são obrigados a se submeter à “quarentena”, a um custo total de R$ 770 mil mensais para a União.
O projeto do governo muda radicalmente a legislação vigente. Além de elevar de quatro meses para um ano a duração da “quarentena”, ele aumenta o leque de funções públicas abrangidas, incluindo dirigentes de autarquias, de fundações públicas, empresas estatais e sociedades de economia mista, assessores do governo, ocupantes de “cargos de natureza especial” e até burocratas de segundo e terceiro escalões. Estimativas da Controladoria-Geral da União, responsável pela proposta de mudança, indicam que, se o projeto for aprovado como foi enviado para o Legislativo, será ampliado para 2,5 mil o número de ex-dirigentes potencialmente enquadrados na “quarentena”. Eles continuariam recebendo salários entre R$ 6,3 mil e R$ 8,3 mil durante um ano, o que oneraria a folha de pagamento da União em mais R$ 15 milhões por mês.
A proposta não poderia ser mais absurda. Como o PT “aparelhou” grande parte da máquina estatal, o projeto foi recebido como uma estratégia pouco sutil de criar um generoso seguro-desemprego para os “companheiros” que hoje estão no governo. Defendendo o projeto, o ministro do Controle e da Transparência, Jorge Hage, afirmou que a indicação dos dirigentes a serem beneficiados pela “quarentena” remunerada ficará a cargo da Comissão de Ética Pública e que eles terão de comprovar o recebimento de uma proposta de trabalho conflitante com as funções que exerceram. O problema é que a comissão é ligada diretamente ao Palácio do Planalto e seus integrantes são pessoas de confiança do presidente Lula. Em outras palavras, carece de isenção para fazer a triagem e evitar abusos.
Além disso, o projeto tem outra grave falha. Para dirigentes competentes, que aceitaram sair da iniciativa privada para ocupar um cargo público ganhando bem menos do que recebiam, o prazo de um ano estabelecido para a “quarentena” é excessivamente longo. Ao contrário dos “companheiros”, cuja maioria não tem formação nem currículo para obter uma boa colocação em alguma empresa privada, os profissionais de alto nível, ao se exonerarem de uma função pública, só perderão dinheiro se forem obrigados a permanecer 12 meses sem poder retornar ao mercado de trabalho. Em outras palavras, o projeto desestimula profissionais de alto nível a aceitarem convites para ocupar postos no governo, o que impede os governantes de contar com colaboradores competentes e compromete a eficiência de sua gestão.
Na realidade, a “quarentena” é uma medida moralizadora cujo alcance deveria ficar circunscrito somente à área econômica e às agências reguladoras. Como lembra o deputado eleito Paulo Renato Souza (PSDB-SP), que durante 15 anos ocupou cargos de primeiro escalão nos governos estadual e federal, até no caso de áreas aparentemente estratégicas, como a de licitações, o risco de utilização de informações confidenciais é pequeno. “O administrador que sai não tem controle sobre a decisão que seu sucessor tomará”, diz ele.
Vamos esperar que o Legislativo rejeite o projeto.