sexta-feira, dezembro 22, 2006

Reinaldo Azevedo Sou "doente" mas sou feliz


"A acusação de antipetismo vem sempre acompanhada de manifestações inequívocas de ódio e até da promessa de algum sopapo: 'Se te encontro na rua, seu careca cheio de tumores...'. A suposição subjacente é a de que, não fosse um estado mórbido, físico ou espiritual, eu estaria com eles. O dissenso é visto como uma invasão tumoral"

Quando me acusam de "antipetista", jamais me defendo. De certo modo, é verdade. Mas só de certo modo e à medida que reajo à tentativa do petismo de se afirmar como um novo humanismo, uma versão totalizante do homem e da sociedade aplicável a todos os campos do conhecimento e da experiência. Mas chego a esse ponto daqui a pouco – depois de uma digressão, que segue nos três parágrafos seguintes.

A acusação de antipetismo, especialmente nos comentários do blog, vem sempre acompanhada de manifestações inequívocas de ódio, de fúria e até da promessa de alguns sopapos: "Se te encontro na rua, seu careca cheio de tumores...". Já não os tenho mais, até onde sei. Pouco importa. A evocação da doença como metonímia – a parte que é todo – é um rito que exorciza o demônio da crítica e expulsa a diferença do convívio social. A suposição subjacente é a de que, não fosse um estado mórbido, físico ou espiritual, eu estaria com eles. O dissenso é visto como uma invasão tumoral com intenções finalistas: "dar um golpe", "voltar ao poder", "destruir o governo" – o agente da salubridade. As tiranias sempre se excedem nos símbolos de limpeza, pureza, assepsia e retidão morais.

Comunismo e fascismo combateram, por exemplo, a "arte decadente", propondo em seu lugar uma estética moral. Os soviéticos escolheram a ditadura do futuro, com os operários e camponeses severos, cheios de fé, do Realismo Socialista. Já os nazistas optaram pela ditadura do passado, com um retorno às formas perfeitas, "saudáveis", uma espécie de neoclassicismo de Estado, um tanto melancólico até, mas sempre aspirante a uma inumana serenidade ou gravidade atemporal. Em qualquer dos casos, tratava-se de um escapismo imposto ou pelo terror revolucionário ou pelo terror reacionário.

Só as sociedades livres, plurais, democráticas, de mercado se dedicam a uma ética e a uma estética, digamos, "sujas", internacionalistas, precárias, contaminadas de presente, voltadas para a indagação de questões existenciais, individuais, não programáticas, que não cabem nos anseios de retorno a um homem pré-industrial, pré-urbano, anterior à queda, ou nas escatologias pós-capitalistas, rumo ao fim da história.

Se não me defendo da acusação de antipetismo, também aceito, nos termos dados acima, a suposição de que possa padecer mesmo de uma doença do espírito, metáfora dos tumores físicos, que me torna incompatível com a metafísica influente destes dias. Nem aposto em amanhãs que cantam nem busco restaurar a Idade do Ouro. Em suma, não acredito em petismos: nem no reacionário (fascista e restaurador) nem no revolucionário (bolchevique e mudancista). Estou preso, vejam vocês, neste limiar de 2007, ao ano que rompe. A realidade me basta.

À diferença do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), até consigo antever o crescimento da economia com uns seis meses de antecedência, embora, no meu ofício, o único desafio fascinante seja entender a natureza dos verbos, dos substantivos, dos advérbios. Há mais civilização contida na regência de um verbo do que em qualquer porcaria produzida por utopistas para nos "libertar". Repudio, por embusteiros, os libertadores. Como num poema do português Fernando Pessoa, Lisbon Revisited (1923): "Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço." Ou ainda: "Vão para o diabo sem mim, / Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! / Para que havemos de ir juntos?". É a minha resposta aos que me convocam para guerras santas – ou justas.

Eu já era antipetista antes de o petismo existir. Minha agenda não é negativa em relação a essa legenda, mas positiva na aceitação de alguns marcos que já tinham história quando o partido veio ao mundo. Digo "sim" à liberdade de imprensa; o PT é que diz "não". Digo "sim" ao indivíduo; o PT é que diz "não". Digo "sim" à sociedade civil, livre, até onde for possível, da sombra do Estado; o PT é que diz "não". Digo "sim" à cultura capitalista; o PT é que diz "não". Digo "sim" à punição dos que transgridem as leis democráticas em nome de uma causa; o PT é que diz "não". Digo "sim" à profissionalização das carreiras públicas; o PT é que diz não. Digo "sim" à venda de estatais; o PT é que diz "não". Digo "sim" (supremo pecado!) ao imperialismo americano. O PT é que prefere ser conduzido por fanáticos bolivianos. De fato, como se vê, não sou antipetista. O PT é que é antidemocrático e antiliberal e tenta, na prática, mudar a natureza das conquistas que, entendo, me fazem livre, nos fazem livres.

Isso vai mudar nos quatro anos que se aproximam? Não vai. Os reiterados escândalos me levam a evocar a frase com que o diplomata e político francês Talleyrand (1754-1838) resumiu o destino dos Bourbon, a família real francesa: "Não aprenderam nada; não esqueceram nada". Ela expressa a disposição do PT para lidar com o presente. Ora, se o partido acredita ter a forma do futuro, sendo o verdadeiro "sujeito histórico" (esquerdistas acreditam na história como sujeito e no sujeito como objeto) das mudanças, os que não estão com ele ou padecem de malformação – seres tumorais, patológicos – ou são inaptos, regressivos, tardios, já vencidos pela linha evolutiva da política, de que o partido é a verdadeira voz ativa e o ponto de chegada. Na fantasia do petismo, o destino de todo delfim é se render aos sans-culottes.

Os petistas se esforçam para fingir uma agenda aberta, como se pudessem fundir aqueles "sins" e aqueles "nãos" numa moderna escolástica política, juntando a herança racionalista do capitalismo que repudiavam com o misticismo socialista a que ainda não renunciaram. De fato, preservado o princípio de que o partido é o imperativo categórico, dotado de uma moralidade intrínseca e infalível, seu conteúdo é taticamente lábil, elástico, móvel. Ele transita da esquerda para a direita e desta para aquela a depender da necessidade, ora afirmando a morte das ideologias, para cooptar os "conservadores" úteis, ora reafirmando as identidades: "nós" (que são eles) contra "eles" (que somos nós). O resultado é pior do que a inércia. O país sai da campanha eleitoral, por exemplo, inimigo das privatizações. É como se a maioria tivesse preferido o estatismo ineficiente, mas nativo, ao capitalismo eficiente porque globalizado. Quem propõe tal escolha a uma nação segue a trilha de uma impostura.

A mesma impostura que está dada, entendo, pela "estagnabilidade", que é como defino o modelo econômico petista: a soma de estabilidade com estagnação, caracterizada por baixo crescimento e assistencialismo agressivo, produzido à custa do esmagamento da classe média e de uma repulsa ao que a economia de mercado tem de mais virtuoso – a competição, o individualismo, o espírito empreendedor. O petismo transforma o brasileiro num subordinado mental do Estado, pouco importa sua classe social. O horizonte do partido não é mais uma sociedade sem classes, mas classes que não encontrem outra forma de representação política fora do partido.

Não estou entre aqueles que acham a coerência uma virtude absoluta. O sujeito coerente ao extremo pode é estar errando duas vezes. Se o PT tivesse, de fato, mudado seu ideário, talvez eu o aplaudisse. O partido que, no primeiro mandato, pregou uma coisa e praticou outra promete se emendar no segundo: agora vai fazer o contrário... Prometo continuar "doente". E contente – a exemplo, segundo o Ibope, de 83% dos brasileiros. Feliz Ano-Novo!