27.11
por Denis Rosenfield, no Estadão
O debate político atual está viciado desde os seus próprios fundamentos, visto que as propostas de governabilidade vêm sendo associadas à submissão fisiológica na repartição de cargos e outros benefícios. O espetáculo chega a ser deprimente. As propostas de coalizão já nem conseguem mascarar a entrega de ministérios e empresas estatais, embora um certo artifício retórico fale de uniões programáticas, como se essa expressão pretendesse dizer mais do que o loteamento da máquina estatal. Mais ainda, a oposição é acuada, como se tivesse de participar desse loteamento dito negociação partidária, em nome de uma suposta governabilidade. Quem não adere é imediatamente acusado de tramar contra o Brasil.
Ora, o País não tem tido nenhum problema de governabilidade e o mais próximo que disso tivemos foi o decorrente da corrupção e da ausência de moralidade dos atuais detentores do poder, dos partidos aliados e de seu partido hegemônico, o PT. Os marcos institucionais foram plenamente respeitados e, se o governo não foi mais adiante, isso se deve simplesmente aos seus próprios problemas, aos desvios de recursos públicos, ao aparelhamento partidário da máquina estatal, e não a uma ação qualquer das oposições ou da mídia, que mais recentemente vem sendo acusada indevidamente, como se fosse responsável pelos fatos que reproduz e denuncia. Se problemas de governabilidade eventualmente ocorreram, eles se devem tão-só ao uso desmedido do poder, a práticas escusas e ao tipo de aliança partidária escolhida. A responsabilidade incumbe aos autores e aos artífices dessas propostas e não decorrem do “sistema político” enquanto tal. Quando responsabilidades não são assumidas e, pior, são transferidas a um pretenso problema estrutural, um amplo espaço se abre à sua repetição.
Se algo deve ser feito nesta área, deveria começar por uma limpeza nos próprios quadros governamentais e partidários, passando pelo reconhecimento das responsabilidades políticas. Até hoje os partidos envolvidos nos escândalos não passaram os seus respectivos membros e lideranças diante dos seus respectivos Comitês de Ética. Eles fogem da responsabilidade como o diabo da cruz. Para que servem, aliás, esses ditos Comitês de Ética, se a imoralidade é acobertada partidariamente? E isto independe do floreio das expressões. As palavras que têm sido utilizadas são “concertação” e “coalizão”, a primeira, uma má tradução do espanhol, usada para caracterizar a experiência chilena. Se começarmos pela “concertação”, o País não terá, certamente, conserto. Logo, quando essas palavras entram na cena pública, o intuito dos seus autores consiste em criar uma diversão, mudando o foco dos principais problemas.
Querer trazer a oposição para esse pretenso diálogo significa levá-la para uma armadilha. A função da oposição numa sociedade democrática consiste, sim, em denunciar a corrupção, acompanhar as investigações, sugerir mudanças e avaliar os projetos e iniciativas governamentais, propondo alternativas. A crítica, e não a adesão, é a sua tarefa primordial. Assim se constroem e esboçam alternativas programáticas e a própria rotatividade do poder. Se todos aderissem, escolhas não mais seriam possíveis. Se uma sociedade cessa de ter uma verdadeira oposição, ela caminha para uma solução autoritária. Ou seja, a governabilidade só existe verdadeiramente com uma oposição atuante, que sinalize os problemas existentes e discuta os seus encaminhamentos. A governabilidade, por sua vez, só pode ser assegurada pelo próprio governo, como está implícito no significado mesmo dessa palavra. O atual governo teve durante a maior parte do primeiro mandato uma ampla base “aliada”, conseguindo aprovar os projetos que lhe interessavam. A oposição, não esqueçamos, aprovou os projetos que considerava de interesse nacional, apesar de o governo ter, teoricamente, uma ampla base de sustentação, que prescindiria desse apoio. Se não mais avançou, foi por falta de vontade política. Culpar as oposições por isso não faz nenhum sentido.
Uma sociedade democrática vive de suas clivagens que têm como fundamento o respeito ao pluralismo político. Cada partido tem o direito de fazer suas próprias propostas, procurando mostrar à opinião pública a sua viabilidade, a sua pertinência e a sua importância. Ela se alimenta, também, dos consensos que consegue estabelecer sobre algumas grandes questões nacionais, as que possibilitam precisamente que o país adote uma rota de crescimento econômico, desenvolvimento social e pleno respeito à liberdade. Ora, o Brasil tem encontrado uma nítida dificuldade de construir soluções suprapartidárias, atinentes ao conjunto dos cidadãos e das instituições, sem as quais a luta partidária se direciona apenas para a barganha mais imediata dos interesses demagógicos e fisiológicos.
Seria, por exemplo, o caso da reforma previdenciária, que devolveria ao Estado a capacidade de investimento público; da tributária, que previsse uma diminuição efetiva dos impostos, e não apenas uma redistribuição do bolo entre as ditas entidades federativas; ou da trabalhista, flexibilizando o mercado de trabalho. Para isto não é necessário nenhum tipo de coalizão, mas tão-somente bons encaminhamentos de projetos num são debate parlamentar. As oposições não poderiam recusar-se a discutir e aprovar projetos que, alguns, constam de seus próprios programas partidários. O governo e a oposição, cada um, cumpririam as suas funções.
Esta é a grande carência nacional, e não supostos problemas de governabilidade. Torna-se cada vez mais urgente sair dos lugares-comuns de uma redução arbitrária da taxa de juros ou de uma mera postulação do crescimento econômico, sem que as suas condições sejam introduzidas.