domingo, novembro 26, 2006
JOÃO UBALDO RIBEIRO O estouro da boiada num boteco do Leblon
-Tu hoje tá com uma cara como eu nunca te vejo, só me lembro dessa tua cara naquele dia em que teu cunhado bateu teu carro e o seguro não pagou porque a carteira dele estava vencida.
— Tu tem que me lembrar? Tem que me lembrar? Já não basta eu saber que minha mulher continua dando dinheiro a ele sem me dizer? Não, tu pode não acreditar, mas minha preocupação é com o destino do país, tenho espírito público. Eu tou muito preocupado, esse negócio não vai dar certo.
— Que negócio que não vai dar certo? Pô, cara, sinceramente, hoje é domingo, tá todo mundo numa boa, tu vai querer ficar aqui falando mal do Lula novamente? Te conforma, cara, o homem ganhou, qual é a tua, tu não diz que acima de tudo é democrata? É a democracia, cara, o homem levou no voto, o resto é chiadeira. Eu também não sou esse fã todo dele, mas não tou falando.
Tem que esperar pra ver, não pode sair logo descendo o cacete.
— Aí é que você se engana, eu não tou querendo descer o cacete nada.
Até confesso que, em outra situação, eu estaria, mas no momento tou mesmo é até com uma certa pena dele.
— Pena? O cara vai reeleito, está aí numa boa, que é que tu queria mais, que ele ganhasse o Prêmio Nobel? — Qual é a boa em que ele está? Tu não tá vendo que ele não sabe o que fazer, tá feito barata tonta, perdeu os caras que faziam as coisas para ele e agora fica adiando tudo e não sabe como administrar o cesto de abacaxis que tem na mão? — Também não é assim, ele está costurando as alianças, tá armando o esquema de governo dele.
— Ele está é armando o esquema dos outros. Cara, no lugar dele você ainda teria confiança em alguém? Confiança cem por cento, ali como ele tinha no pessoal que levou com ele da primeira vez? E, se alguém sabe que ele sabe de alguma coisa que ele não sabia, ele não está meio encurralado? Se um cara desses abrir o bocão, não vai sobrar feio pra ele? — Lá vem você com teorias, você sempre gostou de umas teorias.
— Eu não estou fazendo teoria nenhuma.
Ele agora está negociando com todo mundo. É político, ele conversa.
Isso vai ser o governo dele ou dos de sempre? — Bem, olhando assim...
— Os de sempre! E cada vez mais fortes! Não foi para fazer isso que ele se elegeu e reelegeu.
— Sim, você vai e volta e termina sempre na mesma coisa. Ele não cumpriu as promessas da campanha.
Todo mundo sabe disso e, em certos casos, não dava mesmo, de fato não cumpriu, mas...
— Nem vai cumprir as desta. Com o país do jeito que está e esse pessoal que a gente já manja, não vai cumprir nada. Não tem nenhum partido aliado que esteja pensando em melhorar nada, a começar pelo dele mesmo, estão pensando é em cargos.
Com uma situação assim, ninguém precisa de oposição. E não estão pensando em gente competente para os cargos, mas gente que tenha influência política. Ninguém está pensando em país nenhum, está todo mundo pensando no seu. Foi aberta a estação de caça de mamatas.
— Também não é assim, tem gente que...
— Tem gente que, tem gente que, sempre tem gente que, mas dois ou três gatos-pingados, que não podem fazer nada. Os deputados mesmo, o que estão fazendo agora? Cuidando primeiro do deles! Já são os mais bem pagos e beneficiados do mundo e agora, depois de uma grande medida moralizadora que foi devolver as pastas James Bond que cada um ia ganhar às nossas custas, resolveram dobrar os vencimentos. Uma bobagenzinha, só dobrar.
— Bem, realmente nesse ponto você tem razão. Os caras não aliviam.
Trabalham três dias por semana, vivem fazendo CPIs que nunca dão em nada, têm direito a tudo, comem mulheres ótimas, é um festival. Nesse ponto você tem razão, esses caras só servem pra dar despesa e vergonha.
— Viu você, viu você? É verdade, eles vivem fazendo o possível para que o povo ache que não precisa de Congresso, que só faz trazer despesa e vergonha, além de atrapalhar o governo. E toda hora aparece confusão, como essa dos aviões. Ninguém consegue viajar e quem consegue viaja rezando. E tudo mundo tem cada vez mais medo de tudo, tem gente que não bota o pé fora de casa e cataloga quem pode entrar com um sistema eletrônico de impressão digital, nem amigo entra, se não estiver com a impressão digital cadastrada. Então eu fico com medo do estouro da boiada.
— Estouro da boiada, como assim? — A boiada que é o povo brasileiro, nós sempre fomos boiada. Tu é do tempo em que a gente lia no colégio duas versões do estouro da boiada, uma do Euclides da Cunha, outra do Rui Barbosa. O estouro pode começar com qualquer coisinha besta, até o estalido de um graveto. Então é isso, eu fico com medo que, quando menos se espere, o graveto estale.
— Mas de certa forma isso seria até bom. Se houvesse uma verdadeira revolta popular, esses caras iam se mancar. Nesse caso, é uma coisa que ia te agradar, botar essa corja toda corrupta e incompetente para fora; eu vou lhe ser sincero, acho que está na hora desse estouro da boiada, acho que estamos precisando de um governo forte.
— É isso que a boiada já está começando a achar também. Pensando bem, eu não estou mais com pena nenhuma dele.