O governador mineiro, Aécio Neves, é uma promissora liderança política. Demonstra enorme sensatez na abordagem de questões complexas e não defende saídas ilusórias para fazer o Brasil crescer mais. É uma das raridades do cenário político.
Por isso, surpreende sua cruzada pela descentralização de recursos da União. Ou é uma jogada política difícil de enxergar ou revela desconhecimento da realidade fiscal. O governador critica a centralização de 80% das receitas no governo federal e propõe transferir parte delas aos Estados e municípios.
O discurso parece fazer sentido, mas é equivocado. Assim o dizem as contas.
Posição semelhante foi adotada pelos governadores em 1987, perante a Assembléia Constituinte. Dizia-se que a democracia exigia uma descentralização federativa. Também fazia sentido. Acontece que se transferiu um monte de dinheiro para outras esferas de governo, sem a correspondente transferência de encargos.
Ao contrário, houve aumento de despesas da União em favor dos idosos, da educação e do funcionalismo.
A conta de irresponsabilidade logo chegou. Entramos definitivamente na rota da hiperinflação, que somente viria a acabar com o Plano Real. A carga tributária explodiu.
Em 1987, antes da festa de gastos, era de 23,8% do PIB. Agora, já se aproxima dos 38% do PIB. Gastos excessivos geram carga tributária excessiva, dívida excessiva, juros excessivos e investimentos insuficientes. Aí está a principal origem do baixo crescimento.
Pior, os constituintes concentraram as transferências aos Estados e municípios em dois tributos da União, os mais modernos, de mais baixos custos de transação e de menor efeito negativo na alocação de recursos na economia. Por isso, excluídas as transferências e as vinculações de receitas a despesas, a União fica com apenas 43% da arrecadação do Imposto de Renda e 35% da do IPI.
A elevação brutal da despesa exigia arrecadar mais, particularmente para pagar a conta da Previdência, mas era inconveniente usar aqueles dois impostos, pois seria preciso cobrar quase o dobro de IR e cerca do triplo do IPI para gerar os recursos necessários.
Assim, a União teve de recorrer a incidências não partilháveis (as contribuições sociais) para não agravar ainda mais a carga tributária. As contribuições são incidências de má qualidade, mas ficam totalmente com a União. Já representam 45% da receita federal. Arrecadam cerca de 30% mais do que o IR e mais de cinco vezes o IPI.
Embora não tenha dito, Aécio quer que um pedaço das contribuições seja transferido aos Estados e municípios. Ele fala em transferir encargos, para o que sugere atribuir aos Estados a administração das estradas federais. Isso é quase nada.
Como aconteceu na Constituinte, a conta do governador não fecha.
Naquela época, o Ministério da Fazenda alertou para o desastre, mas não foi ouvido. Desta vez, a pasta ficou muda, apesar de dispor de uma profusão de dados para melhor informar o governador.
É preciso pelo menos levantar uma questão básica: não há despesas relevantes a transferir para Estados e municípios, de forma a compensar a descentralização de recursos.
A União arrecada 70% da carga tributária (e não os 80% citados por Aécio). Dados de 2005 mostram que, desse total, 17% são transferidos aos Estados e municípios. A Previdência (INSS), uma despesa que não pode sair da União, leva 30%. Os juros da dívida pública federal são 25% e também não têm como ir para os Estados e municípios.
Os servidores federais (ativos e inativos), que não poderiam virar estaduais ou municipais, consomem 19%. Os gastos federais obrigatórios em educação e saúde absorvem 6%.
Aí está a tragédia. Os gastos federais nesses itens obrigatórios consomem quase 100% da receita da União. Dado que é preciso aplicar o mínimo em infra-estrutura, forças armadas, cultura, gastos de consumo e outros, o governo federal despende cerca de 115% do que arrecada.
Como transferir mais a Estados e municípios? Alguém precisa fazer essas e outras contas para o governador. Homem inteligente e político habilidoso, ele pode se convencer de que a saída é apoiar reformas para reduzir os gastos estruturais do setor público, particularmente os da Previdência.
Descentralizar novamente sem tomar essas medidas é reeditar, de forma piorada, o desastre fiscal de 1988.