terça-feira, outubro 31, 2006

Neopresidencialismo à vista - Jarbas Passarinho



O Estado de S. Paulo
31/10/2006

Escrevi este artigo antes da apuração dos votos do segundo turno das eleições presidenciais, certo de que Luiz Inácio Lula da Silva - o presidente de honra do PT - seria reeleito, como dizia um dos seus cartazes: “Lula de novo, com a força do povo.” Cabe-me cumprimentar o vencedor democraticamente eleito. José Sarney e Delfim Netto, meus queridos amigos desde a poderosa Arena, fariam melhor a saudação, mas decerto não expressariam - como eu - a preocupação com o futuro imediato.

Certa feita, em outubro de 1966, sendo eu governador do Pará e vitorioso em eleição direta o meu substituto, major por mim indicado, encontrei-me com o presidente Castelo Branco no Palácio da Alvorada. Ele estava sob forte tensão da “linha dura” fardada, com adeptos na Vila Militar do Rio de Janeiro, e de Carlos Lacerda, que se transferira para as proximidades dos quartéis. Postulando não permitisse ele a posse dos oposicionistas Negrão de Lima, na Guanabara, e Israel Pinheiro, em Minas, eleitos pela oposição, em seu estilo em que o sarcasmo era comum, disse garantir a posse de ambos, explicando o porquê: “Pela mesma razão que apóio a posse daquele major que você inventou no Pará.” Expressei minha solidariedade e a preocupação com o rumo da crise. Levou-me à garagem e se despediu me dizendo, algo tenso: “Preocupe-se, mas não muito.”

Mas o Ato Institucional nº 2 acabou assinado dias depois. Esforçar-me-ei, agora, para não me preocupar muito. Mas, gato escaldado, de água fria tenho medo, desde que li ter o presidente Lula se recusado a assinar o documento da Academia Brasileira de Direito Constitucional de comprometer-se a não convocar uma Constituinte no decorrer de um eventual segundo mandato. A recusa, explica-a, com a inteligência que lhe é peculiar, o sr. Marco Aurélio Garcia, xará do filósofo estóico que nos deixou máximas escritas em grego, tidas como breviário sem igual, interrompido pela peste que não lhe poupou a vida. O argumento, aparentemente irrespondível, é que, “por uma questão de método, o presidente não pode assumir - a favor ou contrariamente - posição no que se refere a procedimentos que devem presidir a implementação de transformações institucionais que venham a ser acordadas por um majoritário e expressivo setor da sociedade”.

A falta de concisão do prestimoso assessor, que antes se destacava em missões diplomáticas, à maneira de chefe de um “Itamaraty do B”, sugere o uso de muitas palavras para clareza pouca, a exemplo da manchete do Estadão Lula deixa porta aberta para Constituinte no segundo mandato. Ives Gandra Martins, jurista, apóia o presidente “porque uma Constituinte originária não pode ser convocada por um poder constituído sem estar profundamente maculado pelo vício da inconstitucionalidade. Por essa razão, só pode ser convocada mediante consulta popular ou plebiscito”. Lida de outro modo, a defesa colide com a omissão estudada do presidente e desde logo impugna seu poder pessoal arbitrário de convocar Constituinte, senão por plebiscito. Mais sucinto é o professor Carlos Ari Sundfeld, da FGV: “Essa idéia de convocação de uma Constituinte é a solução Chávez. A nenhum título se justificará uma convocação nos próximos quatro anos, que não seja a pretexto golpista.”

Taxativo e brilhante ao negar a condição imprescindível para uma Constituinte, o ministro Carlos Velloso ensina: “Só deve ser convocada quando há ruptura constitucional. Uma convocação de Constituinte nesses termos cheira a golpe.” De fato, tivemos várias Constituintes, todas, porém, consentâneas com a sintética lição do ministro Velloso. Com dom Pedro I, a ruptura pela independência de Portugal. Com Getúlio Vargas, depois da rebelião constitucionalista de São Paulo, a acabar com o autoritarismo pós-Revolução de 1930. Com José Linhares, deposto Getúlio ditador, a mudança total da Constituição de 1937, que outorgara. Nada sequer parecido com o Brasil hodierno.

Os constitucionalistas dizem que toda Constituição é incompleta. As reformas têm cabimento para preencher lacunas descobertas ou ocultas. Na primeira, quando uma norma desejável é omitida, por motivo inarredável. Caso da Lei Fundamental de Bonn, impedida de regulamentar regime de defesa. Exemplo de lacuna oculta, quando a Constituição americana precisou ser emendada (Emenda 22) para impedir a eleição de um presidente por mais de dois períodos.

A reforma, por emendas, torna desnecessária a revisão total. Mas talvez Lula pense em imitar Hugo Chávez, saindo da eleição com tal vantagem que garanta maioria de parlamentares nas duas Casas do Congresso e, então, impor as mudanças que lhe convierem. Não a “democratura” chavista a perpetuar-se no poder, dominando o Judiciário, que reformou a seu critério, e o Legislativo de seus áulicos. Como repetir o método do mensalão é contra-indicado, a Constituinte pode ser o caminho para erigir o neopresidencialismo, um regime em que monopolize a decisão política e sua execução, sem se submeter aos controles políticos efetivos da democracia, exercendo seus poderes debaixo de uma aparência de legitimidade democrática.

A História lhe dará a receita, como deu a Napoleão III, e não aquela do presidente africano que governa há várias décadas e que Lula disse ter ido ver como isso era possível, ao visitá-lo, na África. Jogará tudo na Constituinte, para um regime que não prescindirá de um Parlamento e de tribunais formalmente independentes, mas estritamente subordinados ao chefe de Estado.

Penso no conselho de Castelo Branco, na preocupação com a crise político-militar e no seu resultado indesejado. Por isso, preocupo-me “mais que um pouco”.