domingo, outubro 01, 2006

DORA KRAMER

De maré mansa a maremoto

Quem reclamava mais emoção na campanha, não tem do que se queixar na reta final

Dora Kramer

Afora a inquietação que assolava um bom número de almas sobre as razões do sucesso do presidente Luiz Inácio da Silva nas pesquisas de intenção de voto a despeito de tantos escândalos envolvendo correligionários de partido e subordinados no governo, a campanha eleitoral seguia morna até duas semanas atrás.

O clima contrariava as expectativas iniciais de que o acirramento dos ânimos resultante de sucessivas crises políticas faria da campanha uma carnificina, com uma disputa aguerrida e polarizada de ponta a ponta entre PT e PSDB.

Deu-se o oposto: Lula assumiu a dianteira desde o início, a oposição desanimou-se ao constatar que ética não constava entre os artigos de primeira necessidade na agenda da maioria - pelo menos da maioria traduzida nas pesquisas - e formou-se quase um consenso de que hoje tudo seria decidido com facilidade em favor da reeleição do presidente da República.

Pois chegamos ao dia da eleição em clima de conturbação político-policial, o que, para quem gosta, pode ser sinônimo de emoção. Suspense haverá até o início da apuração dos votos, pois a perspectiva de haver segundo turno aumentou depois dos dissabores que atingiram Lula na reta final, alteraram o humor e sacudiram o conformismo geral.

Se as adversidades serão suficientes para levar a eleição ao segundo turno, digamos o óbvio: impossível saber.

Se uma hipotética nova etapa será, como gostam de dizer os especialistas, uma outra eleição reiniciada do zero, escoremo-nos no mais provável para especular: nada indica, pois o patrimônio de Lula é grande e a identificação do eleitorado com o adversário não autoriza apostas certeiras na virada.

Fato é, porém, que a ainda mais plausível vitória de Lula, seja em primeiro ou segundo turnos, dar-se-á sob o signo do travo amargo do confronto.

A continuidade da crise política está irremediavelmente contratada, resta saber em que proporções acontecerá. Embora seja improvável, a oposição pode até dar uma trégua a Lula, mas jamais aceitará aderir a pactos de governabilidade, pois os sabe desprovidos de uma real disposição ao desarmamento.

Por mais que o presidente e seus assessores mais próximos, como Tarso Genro e Marco Aurélio Garcia, possam até apostar de verdade numa agenda mínima de entendimento, o PT não abre mão do exercício da política pela via do conflito permanente, como já demonstrou em diversas ocasiões durante mesmo os quatro anos em que ocupou a Presidência da República.

Se já não tivesse dado mostras suficientes de como a natureza original leva os petistas ao ataque quando se sentem fortalecidos, a tentativa de 'jogar uma pá de cal' na candidatura de Geraldo Alckmin e ferir gravemente aquele que deverá ser o principal líder de oposição, por meio de um dossiê contra José Serra, foi a prova dos nove.

Mas a proposta de paz não esbarra apenas no PT. A oposição não quer, e por dois motivos básicos: perdendo agora, pretende se credenciar à Presidência em 2010 e, além disso, PSDB e PFL não vêem vantagem alguma em amenizar as ações em relação a um governo sob forte questionamento jurídico e moral.

Equivaleria, argumentam, a um salvo-conduto na melhor das hipóteses e, na pior, a cumplicidade com um passivo que resultará em sentenças judiciais mais cedo ou mais tarde.

Mas, e se o improvável ocorrer e Alckmin vencer?

Bem, aí o PT, a começar pela imposição de suspeição sobre o resultado eleitoral, demandará todos os seus esforços, mobilizará o aparelho incrustado na máquina do Estado, para, sob a forte liderança popular de Lula, transtornar o ato de governar.



Veredas

Ao longo da campanha, os candidatos acabaram tomando caminhos diferentes dos pretendidos, desvios de adaptação das expectativas geradas à realidade dos fatos.

O presidente Lula, por exemplo, não sustentou o personagem 'paz e amor' que havia prometido encarnar. A exasperação foi sua marca registrada.

Geraldo Alckmin não conseguiu promover o 'embate de personalidades' entre ele e Lula, com o qual esperava incorporar aos olhos do eleitor o baluarte da ética e dos bons costumes. Tampouco mostrou contra o adversário um átimo da ferocidade exibida na disputa pela legenda do PSDB para concorrer. A monotonia balizou seu desempenho.

Heloísa Helena não personificou a alternativa à dicotomia PT-PSDB nem eletrizou a temporada eleitoral como pareceu no início. Avessa ao papel de musa da estação, abafou o melhor de sua personalidade - a delicadeza no trato pessoal. A repetição vestiu suas idéias em figurino de chavões. Na conduta, a agressividade instintiva se sobrepôs à docilidade contida.

Cristovam Buarque acabou se favorecendo da ausência de expectativas em torno de sua performance e só obteve ganhos: dissipou a imagem de candidato de uma 'nota só' e impôs respeito à pauta positiva da educação, inicialmente recebida com enfado. Com sua desenvoltura de raciocínio não produziu votos, mas forneceu alento.

dora.kramer@grupoestado.com.br