Seria patético, mórbido até, se não fosse sério - muito sério. Nenhum líder de massa, nem no Brasil nem provavelmente em qualquer outro país que já tenha sido apresentado à teatralidade do populismo, jamais proporcionaria um espetáculo retórico grand-guignolesco como o encenado pelo presidente Lula, no comício de quarta-feira em Belo Horizonte. "A hora que eles tirarem as minhas pernas", bradou, referindo-se à oposição que o estaria esquartejando em praça pública - como fizeram com Tiradentes -, "eu vou andar pelas pernas de vocês. A hora que eles tirarem os meus braços, eu vou gesticular pelos braços de vocês." "E quando tirarem meu coração eu vou amar pelo coração de vocês" (reminiscente da famosa canção kitsch de Vicente Celestino), chegando à cabeça, no fecho apoteótico: "Eu vou pensar pela cabeça de vocês." Se vivo estivesse, que matéria-prima teria Bussunda para a edição seguinte do Casseta & Planeta! A alusão humorística é para aliviar o assombro provocado pela nova fronteira que o candidato acaba de ultrapassar - de caso pensado. Embora a mensagem de encarnação no corpo do povo (como Jesus na eucaristia) pareça aos desavisados um improviso, uma exaltação sob o calor do palanque, é seguramente algo pensado, estudado, cuidadosamente ensaiado para uma platéia que, como todas do gênero, se caracteriza por dois traços: o entusiasmo pelo presidente, exacerbado pela experiência pessoal de melhora de vida no atual governo e, em conseqüência disso, a falta de espírito crítico para perceber o ridículo do discurso que ouviu e, também, a ampla zona de sombra do lulismo, mapeada pela corrupção. No paroxismo de se encarnar organicamente no povo, ele vai além da metáfora: pretende que o seu eleitor típico se veja a si próprio conduzindo o Brasil - já nem mais por interposta pessoa. E, como ele diz, deixa a oposição atônita porque consegue isso com uma oratória que nenhum outro político ousaria utilizar. Uma comparação ajuda a entender o seu ponto forte. Mau administrador, por falta de preparo e excesso de impaciência com as servidões da governança, ele demonstrou um talento extraordinário na construção da invulnerabilidade de sua liderança aos escândalos que poluíram irremediavelmente o seu governo. Na carta-testamento, Vargas também falou de sua imorredoura comunhão com o povo. "Quando a fome bater à vossa porta", escreveu, "sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação." O povo era convocado para se projetar em Getúlio morto. Lula se transfigura no povo vivo. A nenhum marqueteiro decerto ocorreria tão assustador golpe de mestre. Por isso, se reeleito, como parece que será, começará o segundo mandato mais blindado pela conquista da imaginação popular do que há quatro anos. Mas, sem o apoio político quase unânime de que gozou no início do seu primeiro mandato. Efetivamente, antes dele, nenhum presidente livremente escolhido teve tão vasto apoio - até da mesma mídia de que ele se queixa sem cessar - no seu primeiro ano no Planalto. Até eleitores de outros candidatos no turno inicial de 2002 e do finalista José Serra na rodada decisiva "lularam". O mesmo se pode dizer dos principais partidos da oposição. Esta página, tendo deixado explícitas as suas objeções ao então candidato petista, diversas vezes saudou o triunfo eleitoral do pau-de-arara que chegou ao cume como altamente benéfico para a imagem do Brasil no exterior como demonstração não apenas da vitalidade da democracia política brasileira, mas, principalmente, da existência aqui de uma mobilidade social comparável à que caracteriza a democracia norteamericana. Ainda depois do Waldogate, em 2004, e de tudo que se seguiu, a imprensa - sem deixar de criticar a inaceitável conduta do presidente em cada escândalo - nunca lhe negou, no noticiário, um espaço jamais obtido por nenhum outro político ou governante. E o que preenchia esse espaço não eram os seus atos de administrador, mas os da campanha eleitoral a que se entregava, já então, com o mesmo ânimo que lhe faltava para se aprofundar no conhecimento dos problemas nacionais e tomar decisões para resolvê-los, quando instalado no gabinete que passaria a freqüentar cada vez menos. Tanto na mídia quanto nos partidos da oposição, a reação à sua reeleição teria uma acolhida muito diferente. Mas esse é assunto para outro editorial. |