O Globo |
28/9/2006 |
Os programas sociais do governo são os principais responsáveis pela forte votação que Lula conserva entre a população de mais baixa renda e menos escolarizada, base para a solidez de sua popularidade e onde foi buscar o apoio que lhe falta em outras áreas da opinião pública, numa metamorfose política radical, indo dos grandes centros urbanos para mediação direta com o eleitorado dos grotões. O presidente do PSDB, Tasso Jereissati, chamou-o de "coronel do século XXI", que troca votos pelo assistencialismo. Mesmo que sejam necessários à chamada "rede de proteção social", os três programas mais vistosos do governo - Bolsa Família, crédito consignado e agricultura familiar - acabam caindo no assistencialismo puro e simples. Frei Betto, o ex-assessor especial do Planalto e um dos formuladores do Fome Zero, em entrevista recente ao jornal italiano "Corriere della Sera", define o Bolsa Família como "assistencialismo puro, que não muda a estrutura social e faz recair rapidamente na miséria". Diz que 11 milhões de famílias atendidas é um número prestigioso para Lula, mas significa pouco. Os beneficiados veriam no dinheiro que recebem do governo "um salário" e, diz Betto, "logicamente vão retribuir nas urnas". Tanto é assim que o senador Efraim de Moraes (PFL-PB), numa típica esperteza eleitoreira, propôs que se dê também um 13º salário aos beneficiários. Amanhã, analisarei o acompanhamento das condicionalidades do Bolsa Família e o que é preciso para que se torne um instrumento de inclusão social, e não apenas um instrumento eleitoreiro. Também o programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf), que completou dez anos, entrou na rota do assistencialismo. Segundo o ex-presidente do Incra, Xico Graziano, "há um chamado 'Pronafinho', misterioso, que libera até R$1 mil para cada família, apenas com documento de identidade e carta do Sindicato da Contag. Eles é que controlam essa picaretagem, transformando empréstimo em esmola, pois nunca será pago". Há também rebates e descontos que o BNB ou o BB fazem, semelhantes às normas do Pronaf para assentados. As liberações estariam acontecendo em todo o Nordeste. "É um Bolsa Família nas contas do sistema financeiro, mas com aval do Tesouro, portanto sem riscos para o banco". Um trabalho de Carlos E. Guanziroli, professor adjunto da Faculdade de Economia da UFF, considerado o maior especialista em agricultura familiar do Brasil, mostra que as avaliações sobre o Pronaf são contraditórias, segundo Graziano: "A maioria indica que os tomadores pioram a qualidade de vida e os negócios no campo". Segundo o estudo de Guanziroli, um dos pontos críticos do programa diz respeito à capacidade de pagamento de crédito por parte dos beneficiados, "que não parece ter sido assegurada convenientemente pelas autoridades, já que precisaram conceder contínuas renegociações e resseguros dos empréstimos que ficaram em atraso ou estavam ficando inadimplentes". Ele considera necessário "rever a institucionalidade e a forma de operação do Pronaf, a fim de reforçar a disciplina financeira, induzir os mutuários a buscar o máximo de eficiência na utilização dos recursos e melhorar o sistema de políticas complementares para promover a efetiva consolidação do agricultor familiar". Segundo Guanziroli, é preciso avaliar "se os rebates e fortes subsídios no principal do crédito devem ser mantidos". Segundo ele, um crédito como o Pronaf A e o B, nos quais até 40% do valor do principal pode ser perdoado, "pode confundir o beneficiário sobre o que é o crédito ou doação, deseducando-o no futuro quando ele tenha que enfrentar empréstimos comerciais sem rebates desse tipo". O professor chega a sugerir que "talvez fosse o caso de renomear os programas, chamando alguns de transferências diretas (juntando-os ao Bolsa Família) e mantendo o conceito de crédito para aqueles casos nos quais se trate efetivamente disso". Sutilmente, diz que nos financiamentos "as condições devem ser respeitadas, sem macular o papel dos bancos enquanto agentes financeiros". Segundo seu estudo, "atualmente não existem mecanismos de controle de saldos devedores por parte dos bancos, nem esses saldos são informados de forma transparente à sociedade". Por fim, o crédito consignado, que forma o tripé das políticas sociais do governo, também tem sua função social distorcida pela leniência com que a fiscalização trata os bancos mais agressivos nesse setor, e pelo uso político do mecanismo de crédito popular. No mesmo discurso em que denunciou o uso político do Bolsa Família e do Pronaf, o senador Tasso Jereissati disse que no Nordeste, bancos colocam kombis nas ruas oferecendo o crédito consignado sem que o incauto cliente saiba que será descontado em folha. Há relatos de políticos que induzem eleitores a pegar o dinheiro como se fosse doação governamental. Por outro lado, há recordes no aumento do número de endividados e no comprometimento da renda com dívidas. Em julho, houve um aumento de 89,2% sobre julho de 2005 na média de 15 estados, segundo o Serviço de Proteção ao Crédito (SBPC). A alta acumulada no primeiro semestre é de 35%. A inadimplência cresceu 24,2% em relação ao fim de 2004. O comentário do economista Roberto Messenberg, do Ipea, dá bem a dimensão do problema e faz ligação direta de causa e efeito entre os programas assistencialistas e a situação da economia: "O esgotamento do crédito revela o artificialismo e a insustentabilidade das políticas adotadas pelo governo para promover o crescimento atual". |