sábado, setembro 30, 2006

O peso do Estado

Nenhum presidente brasileiro deixou o governo com menos gastos do que quando entrou. Desse vício surgiu a tromba gigante de um Estado que já suga 40% da riqueza nacional

Lucila Soares e Sandra Brasil

Montagem sobre fotos Bob Elsdale e Tim Bradley Getty Images



Nesta reta final de uma eleição que vai decidir os rumos do Brasil nos próximos quatro anos, VEJA dá sua contribuição a um dos mais acalorados debates da atualidade: qual é, afinal, o papel que cabe ao governo no desenvolvimento de uma nação e na garantia de bem-estar a seus cidadãos? Para isso, partiu de um levantamento que mostra o que aconteceu no Brasil nos últimos cinqüenta anos em três grandes áreas – infra-estrutura (estradas, abastecimento de água, fornecimento de energia elétrica e telefonia), educação e saúde (acesso ao ensino fundamental e à universidade, mortalidade infantil e expectativa de vida) e consumo de bens duráveis (automóveis, geladeiras, televisores e computadores pessoais). São doze gráficos, nos quais estão identificados os períodos de maior evolução de cada um dos indicadores, quem era o presidente e quais foram as medidas que determinaram o avanço.

O resultado mostra uma inequívoca melhora nas últimas cinco décadas, ao longo das quais o Brasil teve treze presidentes. Confirma que o Estado teve papel relevante em saltos fundamentais, como a construção da infra-estrutura de geração e distribuição de energia e de abastecimento de água, que por sua vez contribuíram para a melhoria de indicadores sociais, como a redução da mortalidade infantil. Deixa claro também, no entanto, que boa parte desses avanços foi conseguida à custa de um Estado cada vez maior e mais voraz, cuja ineficiência foi coroada há dezoito anos, com um gigantesco desastre fiscal – a Constituição de 1988. Com o propósito de corrigir injustiças do período militar, a nova Carta criou uma montanha de direitos e privilégios que amarraram o setor privado e obrigou o Estado a gastar cada vez mais com aposentadorias, funcionalismo público, pensões e programas sociais. Ao engessar o Orçamento com essas despesas populistas e corporativistas, a Constituição empurrou o setor público para a ineficiência e a corrupção. Pior. Para fazer frente aos gastos, o governo teve de arrecadar cada vez mais, e a carga sobre o contribuinte brasileiro dobrou. Os trabalhadores têm 40% de sua renda ceifada pelos tributos. O brasileiro trabalha, a cada ano, quatro meses e 25 dias só para pagar impostos.

No conjunto, os dados comprovam mais uma vez o acerto de uma das máximas do economista Roberto Campos, um dos mais lúcidos pensadores do Brasil do século XX. Disse Campos, que foi fundador do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, na década de 50, e ministro do Planejamento do governo Castello Branco: "Eu acreditava muito nos mecanismos governamentais. Mas eles têm células cancerígenas que crescem incontrolavelmente. Há algo de doentio na máquina estatal". É esse o ponto. O Estado pode até ter intervenções pontualmente positivas, mas nunca sabe a hora de passar o bastão à iniciativa privada. Quando sai de cena, o governo assume seu melhor papel. Os dois casos emblemáticos são o fim da reserva de mercado de informática, no governo Collor, e as privatizações levadas à frente por Fernando Henrique Cardoso. O resultado foi um impressionante crescimento do número de computadores pessoais e um avanço sem precedentes nos serviços de telefonia no Brasil.

Os governos tiveram papel fundamental nos três grandes ciclos de desenvolvimento do país no século passado: a era Vargas, que rompeu com a República Velha e deu início à primeira arrancada industrial brasileira; os anos JK, que avançaram na industrialização, voltando-se para os bens de consumo duráveis, e desbravaram o país com o maior investimento da história em abertura de estradas; e o governo militar, que fez a segunda revolução industrial nacional, completando os investimentos em infra-estrutura e investindo em informática, petroquímica e química fina.

O problema é que cada um desses ciclos teve um preço alto, pago pela sociedade brasileira. A euforia dos anos JK teve como resultado um surto inflacionário sem precedentes. Depois do "milagre brasileiro" iniciado no governo de Emílio Garrastazu Medici, nos anos 70, o Brasil caiu numa recessão que, junto com o surto inflacionário dos anos 80, estagnou o país por mais de uma década. Os longos períodos de intervenção na economia tiveram efeitos colaterais nefastos, como o atraso tecnológico que resultou da reserva de mercado para a informática. Além disso, no fim de cada um desses ciclos, emergiu um Estado cada vez maior, e mais voraz.

"Quando se discute o papel do Estado brasileiro, uma característica chama atenção: o tamanho que ele assumiu", diz o economista José Alexandre Scheinkman, brasileiro radicado nos Estados Unidos, onde é professor na Universidade de Princeton. Essa característica o transforma num sugadouro de recursos, com pífios benefícios para a sociedade. O governo fica com 30% do produto interno bruto, um porcentual de país rico. E gasta mal. "Falta investimento em serviços básicos, como segurança, educação e saúde, e também em infra-estrutura e tecnologia básica, o que reduz a nossa competitividade em setores que poderiam gerar melhores empregos e maior renda", diz Scheinkman.

Para o consultor e ex-ministro Maílson da Nóbrega, o desafio atual do Brasil é a construção de um Estado moderno. Atualmente a carga tributária brasileira é comparável à de países ricos, sem que a população receba em troca serviços minimamente compatíveis. "O Estado brasileiro pilha dos pobres para dar aos não-pobres, que são os que têm acesso à universidade gratuita e às aposentadorias mais generosas", diz Maílson. Ele cita os EUA como o melhor exemplo de como o Estado pode servir ao desenvolvimento do capitalismo. Lá, como lembra o economista Jacob Weisberg, editor da revista on-line Slate e autor de Em defesa do governo, a participação do Estado na economia e a carga tributária são as menores dentre as de todas as nações industrializadas. Nessas condições, é possível concentrar-se no que é a função essencial dos governos: jogar pesado em educação de qualidade, sem dúvida o melhor instrumento para reduzir a pobreza e a desigualdade, fazer valer leis e contratos, criar um ambiente favorável a investimentos. As agências reguladoras, uma invenção americana, são um excelente exemplo de como o Estado pode se fazer presente, garantindo o direito do cidadão a um bom serviço, sem sufocar a iniciativa privada.

Os avanços do país nos últimos cinqüenta anos são inegáveis. O Brasil é hoje, em muitos aspectos, uma nação moderna, inserida no mundo globalizado e com grande potencial de crescer e tornar-se mais competitiva. Para só citar um exemplo, há menos de dez anos o telefone era um patrimônio que as pessoas declaravam no imposto de renda. Havia quem esperasse cinco anos e pagasse mais de 1.000 dólares por uma linha. Hoje, em geral, a espera foi reduzida para uma semana e a taxa de instalação custa no máximo 170 reais. Na educação, atingiu-se a universalização do ensino básico e um crescimento expressivo no ensino médio e pré-escolar. Na economia, consolidou-se o valor da estabilidade como uma conquista da sociedade brasileira e perdeu-se o medo de tomar medidas impopulares em nome de impedir a volta da inflação. Manteve-se o superávit primário e, com todas as limitações, foi feita uma reforma da Previdência. Além disso, foram tomadas medidas adequadas para melhorar o ambiente de negócios, principalmente na área de crédito.

São conquistas que significam novos desafios. É preciso consolidá-las e avançar. "Um governo não começa do zero. Quando um presidente assume, ele já encontra um grande pomar. Cabe a ele regar as árvores, colher os frutos e plantar novas mudas para que os outros que vão vir depois possam fazer o mesmo", diz Maílson da Nóbrega. O desafio brasileiro é que, mesmo com a inflação sob controle, o país não consegue entrar na rota do crescimento sustentável. Esse não é o único obstáculo a ser ultrapassado. Mas, sem vencê-lo, não será possível avançar na superação da profunda desigualdade que marca a sociedade brasileira. É essa desigualdade que faz o Brasil ter, no século XXI, agenda social de século XIX. É verdade que, ao debelar a inflação, o país deu o primeiro grande passo para reduzir a desigualdade social, o que ficou patente nos dados que o economista Marcelo Néri, da Fundação Getulio Vargas, compilou com base na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. O número de pobres recuou de 35,3% em 1993, ano anterior ao Real, para 22,7% em 2005. Desde 2003, a queda é contínua.

Mas falta muito. Em 2005, 83,4% dos domicílios brasileiros tinham acesso à água encanada. No entanto, apenas 49% eram integrados à rede coletora de esgotos. Outro problema é a educação. Conclui o economista Eduardo Giannetti da Fonseca: "Claro que é melhor ter 97% das crianças brasileiras na escola, mas chamar o que oferecemos de ensino fundamental não corresponde à realidade. A qualidade é sofrível". Essa tem de ser a prioridade não só do próximo governo como dos seguintes.