sábado, setembro 30, 2006

Esse bicho exótico ia alçar vôo...

...marcando o início de uma aliança branca entre petistas e tucanos para 2007, mas o escândalo do dossiê abateu a criação que vinha sendo discutida nos bastidores – e, o que é ainda pior, turvou o horizonte político do país


Otávio Cabral


Com um bico imenso que representa um desafio à aerodinâmica, o tucano é uma ave que, mesmo assim, consegue voar – e, nos últimos tempos, até vinha tentando alçar vôo carregando a estrela vermelha do PT. Esse bicho estranho estava sendo gestado no zoológico da política nacional por meio de conversas discretas entre líderes do PSDB e do PT. Os contatos chegaram a acontecer em ritmo semanal. O tucano José Serra, virtualmente eleito para o governo paulista, andava trocando idéias com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que não é filiado ao PT, mas, depois da sucessão de petistas caídos, acabou sendo um dos principais articuladores do governo Lula. Nos fins de semana, Serra também vinha conversando com o presidente da Câmara, deputado Aldo Rebelo, governista do PCdoB. Outro tucano de bico grosso, o governador mineiro Aécio Neves, que deverá ser reeleito com votação consagradora, tinha contatos diretos com o próprio presidente Lula e, quando preciso, mandava recados pelo prefeito petista de Belo Horizonte, Fernando Pimentel. Nas conversas, tucanos e petistas discutiam uma agenda de interesses comuns para 2007, incluindo a conclusão da reforma tributária, o aprofundamento da reforma da Previdência e aspectos da reforma política.

Ed Ferreira/AE
Mello e Garcia, em encontro no TSE: uma tentativa de desanuviar um pouco o ambiente

Com o estouro do escândalo do dossiê, o bicho tucano-petista morreu antes de nascer e turvou o horizonte político. "Um pacto com a oposição em torno de reformas de interesse mútuo era possível mesmo", admite o secretário-geral do PSDB, deputado Eduardo Paes, candidato tucano ao governo do Rio de Janeiro. "Mas esse episódio do dossiê colocou água em tudo. A apuração desses crimes trará conseqüências graves para a política brasileira nos próximos quatro anos. É um divisor de águas", prevê. O convívio entre petistas e tucanos interessava aos dois lados. Para o presidente Lula, se reeleito, o acordo facilitaria a aprovação de seus principais projetos no Congresso Nacional, na medida em que despoluiria o ambiente parlamentar. Para José Serra e Aécio Neves, o entendimento com o PT seria bem-vindo no exercício de seus mandatos à frente dos governos estaduais, em que é sempre conveniente ter uma boa relação com o Palácio do Planalto. Além disso, os dois tucanos, na hipótese de reeleição de Lula, têm planos de concorrer à sucessão presidencial em 2010. Até lá, como aliado do governo petista, o tucanato se empenharia em aprovar reformas impopulares, como a da Previdência Social, evitando o desgaste de fazê-lo sob um governo do próprio PSDB.

Ao sepultar as chances de aproximação entre petistas e tucanos, o escândalo do dossiê provocou um cenário de conflagração política – seja qual for o resultado da eleição presidencial. Na semana passada, VEJA ouviu 21 especialistas, entre políticos de seis partidos e cientistas políticos, para desenhar o cenário futuro. No caso de Lula ser reeleito, descortina-se uma impressionante sucessão de dificuldades. Alguns exemplos:

Ataques da oposição – Os líderes do PSDB e do PFL, os dois principais partidos de oposição, prometem instalar uma CPI no Senado ainda neste ano com o objetivo de investigar o escândalo do dossiê. A idéia é descobrir se o grupo de petistas que tentou comprar o dossiê por 1,7 milhão de reais tinha conexão com a campanha reeleitoral de Lula. A oposição também promete acompanhar de perto o processo que corre no Tribunal Superior Eleitoral sobre se houve abuso de poder do comitê de Lula no caso do dossiê – uma ameaça tão concreta que, na semana passada, o novo coordenador da campanha de Lula, Marco Aurélio Garcia, se ocupou em visitar seu xará, Marco Aurélio Mello, presidente do TSE, para desanuviar o ambiente. "Quando o mensalão e os sanguessugas já estavam indo para a história, o PT produz um novo escândalo que dá munição extra à oposição e, com isso, fragiliza um eventual segundo mandato de Lula antes mesmo de seu início", diz o cientista político Murillo de Aragão, da Arko Advice, empresa especializada em análise política de Brasília.

Nilton Fukuda/AE
Thomaz Bastos e o tucano José Serra: fim das conversas para uma aliança

Base de apoio – Com o novo escândalo, o PT corre o risco de eleger menos parlamentares do que o previsto. Nas últimas estimativas, calculava-se que o partido conseguiria eleger entre oitenta e noventa deputados, número muito próximo ao que elegeu em 2002. Agora, no entanto, essas estimativas caíram para algo entre 65 e 75 deputados. Com isso, o governo Lula terá menos apoio parlamentar e ficará mais dependente dos líderes do PMDB, cujo preço a ser cobrado para defender o governo tende a aumentar. "Não dá para esperar uma qualidade muito superior da base do novo mandato em relação à do primeiro", afirma o cientista político Rubens Figueiredo, do Cepac, consultoria política com sede em São Paulo. "Lula continuará apostando na fisiologia e na cooptação de deputados de outros partidos, principalmente do PMDB, mas com um preço mais alto por causa dessa nova crise."

Dificuldades no Congresso – Além da falta de diálogo com os principais partidos de oposição e de uma base de apoio altamente gelatinosa, o governo encontrará uma situação adversa nas duas Casas do Congresso. A Câmara estará ocupada com uma agenda atolada de processos de cassação de sanguessugas e o Senado seguirá dominado pela oposição. O governo terá problemas para aprovar seus projetos, principalmente no início do mandato. "Espero um mandato com muita medida provisória, com o Congresso decidindo tudo em cima da hora por falta de articulação política. O governo é fraco em articulação política e está sem articuladores", prevê a cientista política Lucia Hippolito.

Montagem do governo – Com o escândalo do mensalão, que veio a público em junho do ano passado, o presidente Lula perdeu seu grupo de confiança, no qual estrelavam os ministros José Dirceu e Antonio Palocci. Agora, com o escândalo do dossiê, não chegou a perder auxiliares importantes, mas arranhou severamente sua imagem. Com isso, Lula amplia suas dificuldades para executar o plano de atrair notáveis para compor seu ministério. "O novo governo de Lula, se houver, já vai começar com cara de velho, sem ministros de grande expressão política, sem nomes de destaque. O risco desse cenário é que Lula reforce a comunicação direta com as massas, arte na qual é mestre mas que traz um custo alto para o país", diz Gaudêncio Torquato, da Universidade de São Paulo (USP).

Marcos D'Paula/AE
Bornhausen e Tasso Jereissati, líderes da oposição: acenando com o impeachment

Com todos esses obstáculos pela frente e com tantos fantasmas de campanha para exorcizar, Lula pode fazer um segundo governo sob a pesada ameaça de um impeachment – o que seria desastroso para seu governo e para a estabilidade política. "Lula corre o risco de ter um segundo governo com desgaste semelhante ao de Nixon", diz Murillo de Aragão, da Arko Advice. Eleito para a Casa Branca em 1968, Richard Nixon foi reeleito em 1972, mas renunciou ao segundo mandato em decorrência do escândalo de Watergate, patrocinado no primeiro mandato. "Hoje, parece difícil imaginar um impeachment, pois não há mobilização da sociedade civil, que parece anestesiada. Mas o desgaste de Lula será inevitável", completa Aragão. Na semana passada, no entanto, o atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, anunciou que a entidade, depois de encerradas as eleições e empossada uma nova legislatura no Congresso, pode voltar a debater a proposta de apresentar um pedido de abertura de processo de impeachment contra Lula. É um sinal de que, talvez, a apatia da sociedade esteja chegando ao fim. "O assunto pode voltar à tona", diz Roberto Busato.

Na hipótese mais remota de uma vitória do tucano Geraldo Alckmin para o Palácio do Planalto, o futuro também se mostra conflagrado, na opinião dos especialistas. No plano político, o PT faria uma oposição implacável e virulenta, julgando-se apeado do poder por "golpismo das elites". No plano administrativo, ninguém prevê que, em caso de vitória tucana, o PT promova uma transição civilizada como a que se deu de Fernando Henrique Cardoso para Lula. "Alguém duvida que os petistas queimem documentos, apaguem arquivos ou coisas parecidas antes de deixar o governo? Trabalhamos com a hipótese de uma transição sem nenhum traço de civilidade ou cortesia política", diz o senador Jorge Bornhausen (SC), presidente do PFL. Além disso, os movimentos sociais que atuam como braço do petismo, sobretudo a CUT dos sindicalistas e o MST dos sem-terra, tenderiam a radicalizar suas ações. "Os movimentos sociais serão o xis da questão em caso de vitória de Alckmin. Eles não se conformarão em perder espaço no governo e vão radicalizar. Já estamos preparados para isso", diz o líder do PFL no Senado, José Agripino, que lutou para ser vice de Alckmin, mas perdeu a batalha para o senador José Jorge, do PFL de Pernambuco.

Num horizonte com nuvens tão carregadas, se reeleito, Lula terá de se empenhar duramente para governar. Visto da reta final da campanha, o quadro parece tão delicado que o deputado Moreira Franco, do PMDB do Rio de Janeiro, aconselha o presidente a mirar-se no exemplo do governo de Fernando Collor de Mello. "O governo Collor é uma experiência rica que não deve ser desprezada", diz o deputado, que acompanhou a queda de perto. Em primeiro lugar, Lula não deve dar sinais de que desdenha da classe política. "Collor fez isso ao dizer que Ulysses Guimarães era um velho que não merecia respeito e angariou a antipatia de toda uma geração de políticos que lutou contra a ditadura militar", relembra Moreira Franco. Em segundo lugar, Lula não pode abdicar de sua autoridade presidencial, aceitando um ministério imposto por aliados – como Collor também fez. "Lula tem de manter a autoridade, a compostura, enfrentar a crise de maneira republicana. Tem de trazer quadros de referência moral para o governo, mas não pode abrir mão da autoridade ao fazer um ministério dele, de pessoas de sua confiança, não apenas de notáveis. Caso contrário, não conseguirá governar." Talvez tudo isso seja útil para Lula e para o país, mas é lamentável que um governante, às vésperas de ganhar um segundo mandato, tenha de se amparar justamente na experiência de Collor.