terça-feira, setembro 26, 2006

Míriam Leitão - Os conspiradores



Panorama Econômico
O Globo
26/9/2006

Em abril de 1981, uma bomba estourou no colo de um sargento num Puma com dois militares no estacionamento do Riocentro, no Rio. Em setembro de 2006, dois graduados funcionários do comitê da reeleição do presidente da República são presos no hotel Ibis, em São Paulo, com R$1,7 milhão, tentando comprar um dossiê contra a oposição. Os dois fatos foram conspirações nos porões do governo. A diferença é que os envolvidos no Riocentro estavam muito mais distantes do então presidente Figueiredo do que os de hoje estão do presidente Lula.

Os dois são atentados contra a democracia. O do Riocentro queria retardar o processo de redemocratização; o de agora, pretendia influir diretamente na escolha do eleitor manipulando informações.

O coronel Job Lorena de Sant'Anna foi escalado para encobrir o crime de 1981. Ele se esmerou para dar ar científico à fraude e preparou uma apresentação, precursora do powerpoint, em que desenhava a trajetória dos estilhaços do que ele definiu como "a genitália do sargento". A tese improvável que tentava provar era que, se estava no colo do sargento, não podia estar sendo carregada pelos militares, mas, sim, pelos opositores do regime. Agora se tenta provar que, se a bomba estourou no colo de pessoas que trabalham na campanha presidencial, obviamente não tem nada a ver com essa campanha, porque o presidente está na frente nas pesquisas.

No atentado do Riocentro, a explicação oficiosa oferecida pelo regime era que tudo havia sido tramado nos porões do regime, a chamada "comunidade de informações", o DOI-Codi, que agia de forma excessivamente autônoma. Agora se diz oficiosamente que a trama foi executada pela Abin do PT, o centro de inteligência "desinteligente", e se tenta isolar o grupo, através de acusações pessoais. São os "imbecis, loucos, insanos" que estavam fazendo uma coisa "abominável". O grupo dos conspiradores inclui pessoas com ligação direta com a copa, a cozinha e a churrasqueira do presidente da República, mas são isolados como loucos solitários que agiram de forma excessivamente autônoma, sem o conhecimento dos chefes. No caso do Riocentro, o general Golbery, estrategista da ditadura, deixou o governo como reação ao atentado. Atualmente não se vê um único indignado no círculo presidencial.

O sargento da farsa do Riocentro foi enterrado como herói. Os conspiradores do governo são chamados de "meninos" pelo presidente da República; o diretor do Banco do Brasil é despedido com elogios pelos seus superiores; o chefe da campanha é afastado com nota de agradecimento. E não se diga que o presidente Lula os criticou, porque também no episódio do Riocentro os conspiradores foram execrados e elogiados, afastados e protegidos, porque protegê-los era a forma de evitar que se continuasse buscando as conexões entre os executores e os mandantes. Ainda se tenta provar que o presidente do Partido dos Trabalhadores, Ricardo Berzoini, nada sabia do que se passava nas entranhas do seu comitê. Se todos os "eu não sabia" forem tomados ao pé da letra, esse é o governo comandado por pessoas que não sabem o que se passa no governo.

Há muitas semelhanças entre os dois atentados. As diferenças ou não enobrecem o atual episódio, ou são apenas curiosidades. Por exemplo: Guilherme Pereira do Rosário e Wilson Machado, convenhamos, são nomes bem mais normais do que Gedimar, Valdebran, Freud e Lorenzetti.

Um dos momentos inesquecíveis da ditadura foi a operação abafa a cargo do dedicado coronel Job Lorena. Ele preparou com esmero sua patética apresentação no auditório do I Exército. Os jornalistas que foram participar da entrevista coletiva se lembram, ainda hoje, dos seus risos contidos diante da bizarra explicação e daquela penumbra na qual o coronel tentava encobrir a intestina verdade dos fatos expostos graças à explosão.

Hoje, encaminha-se uma operação de encobrimento, com Jorge Lorenzetti tostando na churrasqueira presidencial as provas de que as ações que comandava eram de amplo conhecimento de seus superiores.

Houve um momento na ditadura em que uma parte dos seus integrantes acreditava nas mentiras que fabricava. Era a época dos "bolsões sinceros, porém radicais". No caso do Riocentro, ninguém mais acreditava que houvesse algum propósito em qualquer das ações radicais e golpistas, ninguém acreditou que a trajetória de partes íntimas de um sargento e a exposição do intestino de um capitão provavam que era a oposição que jogara a bomba no governo e não uma prova de que se tentava o contrário. É improvável que, no governo atual, alguém realmente acredite em teses como: foi preparado pela oposição que quer melar a eleição.

Desta vez, tem um agravante: o próprio presidente da República comanda a operação de transformar as vítimas em culpados. Os ataques de Lula à oposição denunciando um golpismo inexistente é um dos mais espantosos transformismos já vistos na política brasileira. E ele encenou a farsa repetidas vezes nos últimos dias. Todos os envolvidos na conspiração são do governo e do PT. Alguns têm intimidade doméstica com o presidente, alguns tinham cargos de chefia no comitê da campanha de reeleição, mas o presidente Lula denuncia insistentemente que a oposição é que atenta contra a democracia.

Naquele final do regime militar, a sociedade civil, alerta e viva, reagiu de forma vigorosa, apressando o fim do longo pesadelo. Hoje o país assiste inerte e anestesiado a uma das piores tramas jamais vistas na sua história política.