segunda-feira, agosto 28, 2006

VEJA Um Lula como nunca se viu

Um Lula como nunca se viu

O livro Viagens com o Presidente mostra
a face nada protocolar do petista


Thaís Oyama

Ricardo Stuckert/PR
O presidente Lula e sua mulher, Marisa, na Índia, em 2004

No jargão do jornalismo, um "repórter setorista" é aquele especializado na cobertura de determinado assunto ou instituição. Em Brasília, o Palácio do Planalto é, depois da Câmara e do Senado, o lugar que reúne o maior número de setoristas – são mais de vinte. A serviço de diferentes veículos, eles ocupam uma sala no andar térreo do palácio e têm como principal missão acompanhar o dia-a-dia do presidente da República. Trata-se de uma tarefa ingrata. O aparato que cerca um presidente, que inclui uma pesada estrutura de assessoria de imprensa, tende a burocratizar o trabalho dos repórteres, e o acesso a informações exclusivas muitas vezes é nenhum. Por causa disso, a cobertura do Planalto sempre se notabilizou pelo excesso de notas oficiais e pela escassa produção de "furos" – em suma um terreno árido para a reportagem. Os setoristas Eduardo Scolese, do jornal Folha de S. Paulo, e Leonencio Nossa, de O Estado de S. Paulo, no entanto, escaparam dessa maldição. Tomando como matéria-prima a rotina do palácio e as dezenas de viagens presidenciais que acompanharam nos últimos anos, eles produziram o retrato de um político pouco conhecido dos brasileiros. Ao longo de quase 300 páginas, o livro Viagens com o Presidente (Editora Record) descreve um Lula vaidoso a ponto de censurar um assessor por andar malvestido ao seu lado e propenso a ataques de fúria, como o que o acometeu diante de um subordinado que se esqueceu de trazer-lhe uma toalha (veja trechos do livro no quadro abaixo e na pág. 78). Lula, saberá o leitor, mesmo quando não está irritado, recorre com tanta naturalidade ao uso de palavrões que, entre os petistas palacianos, se difundiu a crença de que, quanto mais pesado o palavrão proferido por ele, maior é o seu grau de intimidade com o interlocutor. "Daí, ouvir um palavrão (do presidente) pode significar status", dizem os autores.

Apesar de dizer que seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, viajava demais, Lula, ao assumir o governo, deixou o tucano comendo poeira. Só nos três primeiros anos de sua administração, fez 85 viagens – quase o dobro do que realizou FHC nos quatro anos de seu primeiro mandato. Segundo cálculo dos autores, o petista registrou uma decolagem internacional a cada 23 dias. Em cada uma dessas viagens, teve setoristas em seu encalço. Como toda relação que envolve convivência estreita e diária, a do presidente com os jornalistas do Planalto tem momentos de paz, de conflito e também de pura implicância. Um episódio ocorrido em Pretória, na África do Sul, dá a noção do grau de puerilidade a que as partes podem chegar. Minutos antes de dar uma entrevista, Lula resolve cochichar algo no ouvido de um assessor, observado pela multidão de repórteres que o aguardam. Diz um trecho do livro: "Os jornalistas ficam intrigados. À noite, depois de três copos de cerveja, o assessor relata num bar as palavras do presidente: 'Tá todo mundo achando que é algo importante o que estou dizendo para você, mas te chamei aqui só para deixar esses caras curiosos e excitados'". Em outro trecho, mais adiante, é a vez de os jornalistas reagirem. No ápice da crise do mensalão, Lula foi obrigado a fazer um pronunciamento na TV em que se eximiu de responsabilidade pelo escândalo, atribuindo-o a traidores que jamais identificou. Setoristas do Planalto encontraram nessa fala uma forma de "vingar-se" do constante desprezo presidencial: "A pergunta da traição passou a ser usada por repórteres em dias de mau humor do presidente, só para irritá-lo. Bastava ele passar direto sem responder a questões do dia para um jornalista gritar: 'Quem traiu o senhor, presidente?'".

Viagens com o Presidente não analisa nem desvenda questões – limita-se a reportar e, nesse sentido, é superficial. Embora sua graça esteja na trivialidade dos fatos relatados, o que começa como qualidade, de tanto repetir-se, acaba virando defeito – alguns episódios, excessivamente banais, poderiam ter sido dispensados. O livro de Eduardo Scolese e Leonencio Nossa, porém, tem seu mérito ao mostrar o presidente Lula sob um ângulo até agora inédito: o da intimidade só revelada nos bastidores das cerimônias oficiais, nos intervalos de uma entrevista coletiva e na descontração de uma cabine de avião. Viagens com o Presidente observa Lula pelas frestas – e o que se vê a partir delas surpreende e diverte.

Trechos do livro Viagens com o Presidente

O MELÔ DO DIRCEU

Sérgio Lima/Folha Imagem


"Nessa viagem ao Rio, o presidente está bem no estilo 'paz e amor' da campanha, com sua dose de animação um pouco além do habitual. Naquele dia, talvez por conta do esfriamento da crise política, resolve levar tudo aquilo na brincadeira. Em dado momento, para espanto e depois risos dos que o acompanham, o presidente caminha até a janela de seu luxuoso quarto e passa a cantarolar junto com os manifestantes o refrão de uma paródia feita para o ex-ministro da Casa Civil:
'Ei, José Dirceu, devolve o dinheiro aí, o dinheiro não é seu'. Saltitante, Lula repete o refrão com um sorriso aberto e os dedos indicadores para o alto como se estivesse num baile de Carnaval."

CAFÉ E CIGARRILHA

"Lula não mede as palavras e fala o que quer (...). Embora não seja cordial como o antecessor, o presidente é visto com simpatia pelos seguranças por ter, segundo palavras dos próprios, a disposição de trabalho e o jeito durão de um militar. Não tem muita paciência. Para ele, tudo tem que ser na hora. Costuma estressar-se com auxiliares a qualquer vacilo. Fica nervoso, por exemplo, se vai a algum lugar que não tenha um café expresso à disposição. Ajudantes-de-ordens, assessores e seguranças sabem que o bom humor do presidente pode ir para o espaço se ele não conseguir fumar sua cigarrilha com uma xícara de café na mão."

"LÁ VEM O LEÃO"

"Nas viagens, em conversas pelo rádio, os seguranças recorrem a inúmeros códigos para garantir a integridade do chefe do governo. Em cada missão, o presidente é chamado por um apelido, geralmente em referência a mamíferos ou planetas (...). 'Lá vem o Leão', 'a Pantera está a caminho', 'Saturno tem pressa e está nervoso', o 'Eclipse apareceu'. Já a primeira-dama é muitas vezes chamada de 'Estrela' ou 'Damasco' (...). Os integrantes do Itamaraty têm um tratamento carinhoso e diferenciado, com direito até a nome de desenho animado. Diante da aproximação dos diplomatas, os seguranças comunicam os sinais de alerta: 'Lá vêm os Bambis' ou 'as Gazelas estão a caminho'."

"IGUAL A EXAME DE PRÓSTATA"

José Paulo Lacerda/AE


"Numa audiência com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, na época em que o governo começa a discutir a transposição de parte das águas do rio São Francisco, o presidente ouve a opinião contrária dela às obras e os argumentos favoráveis dos técnicos da área. Após ouvi-los, consola a ministra: 'Marina, essa coisa de meio ambiente é igual a um exame de próstata: não dá pra ficar virgem toda a vida. Uma hora eles vão ter que enfiar o dedo no c... da gente. Então, companheira, se é pra enfiar, é melhor que enfiem logo'. Lula, até para mostrar personalidade em relação aos 'estudiosos' e 'professores' do governo, leva para dentro do Planalto seu jeito descontraído, seu costume de falar palavrões."

O CIÚME DA PRIMEIRA-DAMA

"Marisa Letícia não se sente bem ao lado de seguranças. Se for mulher, pior ainda. Segurança mulher e ainda mais bonita, sem chance. No início do governo petista, uma militar alta e loira que fazia a segurança de Ruth Cardoso foi logo dispensada. A primeira-dama quer vê-las bem longe do marido (...). Ela gosta de cuidar da privacidade da família. Um exemplo disso ocorreu no início de governo, quando cortou as asinhas de alguns ajudantes-de-ordens que trabalhavam no Alvorada e se achavam no direito de circular livremente nas áreas privativas da residência. Marisa proibiu esse vaivém."

A "HORA DA PRINCESA"

Joedson Alves/AE


"Mas isso também não basta para 'energizar' o presidente, por isso, a assessoria cria a 'hora da princesa'. De segunda a sexta, por volta das 15h, o gabinete é aberto para receber vereadores, antigos companheiros de sindicato, padres, princesas de festas regionais (daí o nome), empresários e pessoas simples que telefonam pedindo para tirar uma foto ao lado do presidente (...) Um assessor avalia: 'A hora da princesa é o momento depois do almoço para o presidente ganhar fôlego. As pessoas não entram no gabinete para pedir nada. Os abraços são gratuitos, fazem muito bem a ele. Podem chamar de populismo. (...) Após a hora da princesa, é outro homem'."

EU ODEIO O SUCATÃO

Lula Marques/Folha Imagem


"A compra de um novo avião presidencial se tornou uma das obsessões do governo Lula. Uma prioridade. Mesmo ciente de que tal iniciativa poderia render-lhe um desgaste na opinião pública, por investir milhões de dólares na compra de uma aeronave diante de milhões de miseráveis no país, o presidente manifestava a certeza de que valia mesmo a pena arriscar. Tudo isso para se livrar do barulho e das constantes oscilações de temperatura no interior do Sucatão (...). Em solo, Lula dizia que o Boeing parecia um forno de microondas. No ar, segundo o presidente, um freezer ligado com a máxima potência."

A "SENZALA" DO AEROLULA

"Ao entrarem no Aerolula, ministros, assessores e demais credenciados encontram seus respectivos nomes em etiquetas coladas pela FAB em cada um dos assentos (...). Em conversas sem a presença do presidente, ministros e integrantes do alto escalão do governo chamam a parte traseira da aeronave de 'senzala', enquanto a cabine presidencial leva o apelido de 'casa-grande'. Ficar na senzala durante todo o vôo e não ser chamado por Lula para uma conversa na cabine presidencial é um sinal de falta de prestígio. Muitos preferem o constrangimento de se oferecer para uma conversa a correr o risco de serem ignorados por Lula na viagem."

DORMINDO NO CINEMA

Ana Araújo e Agência Brasil

Scolese e Nossa, autores do livro; abaixo, o presidente no cinema do Alvorada com o cineasta Cacá Diegues


"Logo na primeira sessão do cine Alvorada, Lula bola uma estratégia para evitar ao máximo o contato com os parlamentares. Chega ao local de exibição com um copo de uísque na mão já com o filme em andamento (...) Naquele dia, aos deputados e senadores ansiosos para pedir liberação de verbas para seus currais eleitorais, resta esperar o fim da sessão para falar com o presidente. Lula, que dormiu e roncou alto durante boa parte da exibição de Narradores de Javé, levanta-se rapidamente assim que o filme termina e numa tentativa inócua de ser sutil manda todo mundo embora de sua residência: 'Gente, vamos embora porque amanhã eu tenho muito o que fazer'."