segunda-feira, agosto 28, 2006

A opção pelo subdesenvolvimento POR Gustavo Ioschpe




"Diferentemente do palavrório de alguns, os
trabalhadores brasileiros não ganham pouco
por ser vítimas de uma elite branca e má, mas
por ser pouco produtivos. São assim porque
a escola falhou com eles"


Lia Lubambo
Trabalhadores: o salário é definido pela produtividade e esta pela ênfase na educação

A situação educacional brasileira é trágica. Poucos discordam dessa constatação. Muito poucos se perguntam por que isso é tão ruinoso e, ainda, por que é tão mais desastroso agora. A primeira e mais óbvia resposta seria: porque estamos privando uma enorme fatia da nossa população dos conhecimentos mínimos necessários para uma vida engajada, consciente, livre e produtiva. Mas basta notar que os cruzamentos de nossas grandes cidades se tornaram abrigos ou espetáculos circenses dos marginalizados para entender que qualquer apelo à solidariedade humana está fadado ao fracasso neste país cordial. Apesar da resistência que educadores e pedagogos têm à intromissão de economistas, empresários e afins em seu território, é neles que se encontrará a revolução educacional de que o país necessita. Porque esses grupos conseguem deixar de tratar a educação unicamente como um fim em si mesma para entender que ela tem um papel vital – e urgente – a cumprir no desenvolvimento do Brasil. Essas vozes dizem e dirão o que a sociedade precisa ouvir: com o nosso sistema educacional atual, estamos condenados ao atraso eterno. Se a fraternidade não o convence a cuidar de nossa educação, faça-o por interesse próprio, portanto.

É impossível a um país desenvolver-se no século XXI quando sua população ainda não resolveu problemas do século XIX. A comparação não é exagerada. Ainda não conseguimos ensinar nossas crianças a ler e a escrever, coisa que outros países já fazem há mais de 100 anos. O resultado final é termos só 26% de nossa população de 15 a 64 anos plenamente alfabetizada. A má qualidade do sistema – e não a falta de vagas – faz com que só 20% de nossos jovens cheguem à educação superior. Países como Coréia do Sul, Finlândia, Estados Unidos e Noruega já passaram dos 80% – quatro vezes mais, portanto. Os outros países desenvolvidos têm taxas próximas de 60%. Chile, Argentina e Uruguai estão na casa dos 40%. A China assusta ainda mais: foi de 6% em 1998 para quase 20% agora.

Essa comparação não é uma competição de vaidades, mas o indicador de uma capacidade fundamental de uma nação: produção de cérebros. Cérebro, hoje, é o patrimônio mais valioso que um país pode ter. Essa é a mudança fundamental que vem redesenhando o mundo e para a qual o Brasil ainda não acordou: a riqueza das nações não está em sua terra, seu clima, seus recursos naturais ou minerais. Em sua maioria, esses fatores já cumpriram seu papel. Hoje e daqui para a frente o progresso se dará pelo aumento de produtividade, pela geração de bens de alto valor agregado. O aumento de produtividade só vem com melhor instrução, com treinamento adequado, pelo desenvolvimento de novas tecnologias. A raiz de todos esses fenômenos é uma só: educação.

Nossas carências nessa área e seus impactos socioeconômicos se tornarão mais aparentes e agudos nas próximas décadas, mas já são visíveis. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam o Brasil em 49º lugar em termos de produtividade – são necessários quatro trabalhadores brasileiros para produzir o mesmo que um americano. Estar mal posicionado é esperado para um país subdesenvolvido. O preocupante é estarmos piorando de um ano para o outro, como mostra a pesquisa da OIT. Dados do IBGE do ano passado indicam que mesmo dentro do Brasil estamos retrocedendo: a participação de indústrias de alta concentração tecnológica diminuiu sua participação no PIB no período de 2000 a 2003.

Os negacionistas empedernidos dirão que o Brasil está mal, mas que sempre foi assim. Que sempre estivemos distantes, tecnologicamente, dos países desenvolvidos e que, mesmo assim, conseguimos taxas invejáveis de crescimento econômico no século passado. Que, eliminados os problemas de juros, câmbio e infra-estrutura, o gigante adormecido acordará e tornar-se-á a potência com que todos sonhamos.

Infelizmente, não é verdade. O descompasso de qualificação entre o Brasil e os países de renda média e alta aumentou enormemente nas últimas décadas. Porque esses países perceberam a importância do capital humano e se esforçaram para massificar o conhecimento em seu nível mais alto, o universitário. De 1980 a 2000, por exemplo, a Malásia aumentou seu número de matrícula universitária em 539%, a Coréia em 429%, Portugal em 368%, o Chile em 202% e a média dos países da OCDE em 146%. O Brasil? Só 45%. É muito em termos absolutos, mas muito pouco ante o que acontece no resto do mundo. Vamos ficando para trás. E, em um período de enormes e rápidos avanços, cada etapa perdida torna a tarefa de equiparação exponencialmente mais difícil. Se persistirem as tendências recentes, em breve não estaremos batalhando pelo acesso ao Primeiro Mundo, mas, sim, para nos mantermos no estágio de subdesenvolvimento atual. Nas décadas de 70 e 80, fomos ultrapassados pelos Tigres Asiáticos. Nos anos 90 e atualmente, assistimos inertes ao forte crescimento de China, Índia, Chile e Europa Oriental. Onde estaremos daqui a vinte anos? Competindo com a África? Gabando-nos de que nosso maravilhoso solo é mais rico que o da Antártica?

Essa perspectiva sombria não diz respeito apenas à posição internacional do Brasil. Os efeitos são igualmente sentidos em nosso bem-estar interno, no dia-a-dia de todos. Estudos que analisam os fatores determinantes da desigualdade de renda brasileira, essa nossa chaga vergonhosa, são unânimes ao apontar a causa, que é disparada a mais importante: desigualdade educacional. Ela sozinha explica de 40% a 50% de nossa desigualdade de renda, enquanto outros fatores comumente apontados como vilões – diferenças de gênero, raça, região geográfica e ocupação – não aparecem com mais de 10% cada um.

Essas desigualdades de renda e educação, por sua vez, alimentam aquele que talvez seja hoje o maior pesadelo dos habitantes das grandes cidades: a violência. Estudos quantitativos nessa área começam a ser feitos no Brasil. Nos EUA, onde a literatura é mais robusta, os resultados são claros: o aumento de escolaridade – especialmente completar a high school, o ensino médio – tem impacto significativo sobre a redução da criminalidade. Uma pesquisa estimou que um aumento de 1% da taxa nacional de conclusão do ensino médio causaria 400 homicídios e 8.000 agressões a menos por ano, gerando uma economia de 1,4 bilhão de dólares. Um ano adicional de escolaridade traria uma diminuição de 30% de homicídios e agressões, 20% de roubo de veículos e 6% de furto de domicílios. Os autores do estudo concluíram que se obteria maior redução da criminalidade investindo na expansão da escola secundária do que na da força policial.

O filme Notícias de uma Guerra Particular traduz a frieza desses números para a realidade brasileira com uma pungência inescapável. Ao perguntar a jovens membros do tráfico de drogas o porquê de sua opção pelo crime, o diretor João Moreira Salles ouve alguns dizer não querer repetir a trajetória de seus pais e avós, que trabalharam de sol a sol por décadas por salários miseráveis, terminando a vida na mesma precariedade em que vieram ao mundo. O fato não justifica nem desculpa o crime, mas representa uma realidade. Só que, diferentemente do palavrório de alguns, os trabalhadores brasileiros não ganham pouco por ser vítimas de uma elite branca e má, mas por ser pouco produtivos. São assim porque a escola falhou com eles. Enquanto ela continuar como está, tendemos a seguir sendo um país irrelevante para o mundo e desalentador para os brasileiros.