terça-feira, agosto 22, 2006

Míriam Leitão - No pântano


Panorama Econômico
O Globo
22/8/2006

O vice-presidente da Bolívia, Álvaro Garcia Linera, chega ao Brasil na quinta-feira para tentar desenrolar a confusão em que se encontra a relação entre os dois países. Ontem, a Petrobras mandou um funcionário à Bolívia para reforçar o time que tenta resolver o problema da ocupação de uma parte do gasoduto pelos índios guaranis. Técnicos da Transierra conseguiram desviar metade do gás que passava por esse trecho do gasoduto.

A cada dia, há uma confusão nova na Bolívia: briga entre a agência reguladora e o ministro da Energia, acusações contra empresas estrangeiras, acusação contra ex-dirigente da Petrobras e, agora, a ocupação de um dos ramais do gasoduto por índios guaranis. A primeira das confusões foi a ocupação das refinarias da Petrobras pelo presidente da República à frente de tropas do Exército, em maio.

Esse local que foi ocupado agora, a estação de controle de Tatarenda, no Chaco, é de tão difícil acesso que nem funcionário a empresa Transierra tem trabalhando lá. É uma estação operada remotamente. O governo boliviano mandou - para tentar evitar que os índios fechassem a válvula, interrompendo o abastecimento para o Brasil -- o ministro do Desenvolvimento Rural, Hugo Salvatierra, que é descendente de guaranis. Os índios exigem o investimento de US$9 milhões que havia sido prometido; a empresa, uma sociedade entre a Petrobras com a Total e a Repsol YPF, disse que esse investimento foi prometido, sim, mas para ser feito em 20 anos.

No fim da tarde de ontem, o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, disse que a empresa pode antecipar os investimentos. Essa deve ser mesmo a coisa certa a fazer. A dúvida é por que isso não foi feito antes e, sim, apenas depois que os índios ocuparam uma instalação da empresa e ameaçam interromper o fornecimento de gás.

O Brasil vive na Bolívia os riscos do moral hazard, ou seja, do precedente desmoralizador. Quando o presidente boliviano, Evo Morales, fez aquela bravata de ocupar as instalações da empresa brasileira com tropas, o presidente Lula disse que Morales estava no direito dele. Comparou o ato da Bolívia com a criação do monopólio do petróleo. Confundiu o indiscutível direito dos bolivianos de terem soberania sobre o gás do seu subsolo, com o desrespeito aos contratos e desapropriação de bens da Petrobras, como as refinarias. Em seguida, Lula foi para uma reunião patética sob o comando de Hugo Chávez de solidariedade ao governo de Evo Morales. Mais adiante, prometeu até empréstimos do BNDES ao país. O episódio todo foi tão espantoso que, pela primeira vez, embaixadores brasileiros que não estão mais na ativa fizeram declarações veementes criticando o Itamaraty.

Ninguém imaginava uma medida de força, mas, sim, o uso dos códigos e sinais diplomáticos para dizer que o Brasil não concordava com aquela forma de atuar. A reação suave do Brasil tinha um motivo: não se queria atrapalhar os planos de Morales de invocar o nacionalismo do povo boliviano para alavancar a própria popularidade e, assim, ganhar as eleições para a Constituinte. Morales ganhou, mas não levou a maioria de dois terços de que precisa para mudar a Constituição.

No dia 11 de agosto, Evo Morales disse a verdade para o povo boliviano: o efeito completo do decreto de nacionalização do gás foi suspenso temporariamente porque a empresa YPFB não tem os US$180 milhões necessários para assumir os negócios que foram tomados do capital estrangeiro. A brasileira Petrobras, a espanhola Repsol YPF e a britânica BP fizeram investimentos no país de US$5 bilhões e hoje não sabem exatamente o que vai acontecer com esse capital investido. Desde maio, quando houve o decreto de nacionalização e a ocupação das refinarias da Petrobras, 30 empresas de energia deixaram de operar na Bolívia, conta a revista "The Economist". No governo brasileiro, informa-se que a Petrobras continua operando as refinarias normalmente, como se nada tivesse acontecido.

O governo brasileiro tem se negado a aceitar o reajuste de preços do gás exigido pela Bolívia. Até porque, pelo contrato, os preços sobem a cada três meses de acordo com uma cesta de óleos. Da mesma forma que o Brasil esperou passar a eleição boliviana convencido de que o governo de La Paz reduziria o radicalismo do discurso, a Bolívia agora espera passar a eleição brasileira convencida de que o Brasil vai abandonar a intransigência e concordará com um aumento dos preços do gás após o fechamento das urnas.

A maneira como tudo isso foi politizado fortaleceu esta idéia de que a melhor forma de conseguir alguma coisa do Brasil é primeiro tomar uma medida de força. A situação dos índios guaranis pode ser mesmo difícil e eles podem ser credores de investimentos prometidos por grandes empresas estrangeiras. O erro é esperar a medida de força por parte dos índios para então conceder o que deveria ter sido oferecido se, de fato, é justo que o concedam: investimentos sociais na área indígena próxima ao local onde está a estação de controle do gasoduto. A relação entre Brasil e Bolívia é proveitosa para ambos - eles têm gás, nós temos mercado; eles precisam dos investimentos, nós podemos fazê-los - mas a demagogia do governo Morales e a falta de visão estratégica da diplomacia brasileira estão criando um pântano entre os dois países.